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O que teriam ouvido se estivessem calados, do Menino da Mãe

Menino da Mãe, músico e poeta, apresentou no passado dia 25 de maio a sua primeira performance, intitulada O que teriam ouvido se estivessem calados. Foi apresentada no NOVO NEGÓCIO/Galeria Zé dos Bois. A codireção artística, a direção técnica e o desenho de luz são de Sebastião Pinto, a criação musical de António Silva (Sal Grosso) e Bruno Pereira (AIRES), a assistência técnica de Lourenço Mascarenhas e a assistência técnica de som de Michael John Kelzo.

A escuridão é absoluta. Na penumbra, vêm-se os músicos no palco e o Menino fora de cena. Começa a declamar o seu texto. Do fundo da sala, ouvem-se palavras de um imaginário muito pessoal, vindo de um lugar escuro, triste, e revoltado: Eu não sou estranho, Eu faço o que tenho; A anomalia é o vício, A anomalia é que nos move; Eu não sou estranho, Eu faço a mais do que tenho; A felicidade surge no intervalo, A infelicidade é por si só o nosso estado constante; A dança daqueles que cavalos querem ser. Avança do fundo da sala em direção ao centro da plateia, joga-se no chão, e salpica magnésio contra a sua cara, cobrindo-a de branco. A sua personagem ganha um caráter angelical, que contrasta com o ambiente (pesado) à sua volta e com o peso das palavras declamadas. A música nesta parte da performance é uma sonoplastia metálica, um drone em loop, um transe repetitivo. Está vestido apenas com um arnês e uma camisola branca de capuz que lhe cobre o corpo até ao sexo. Vai dando voltas à plateia criando uma atmosfera de proximidade, mas também de intimidação. Entre várias outras coisas, exclama: Eu devia ter acabado com isto mais cedo, quando ainda parecia uma brincadeira. Este foi dos momentos da performance com o qual mais empatizei. Durante a adolescência, a rebeldia está à flor da pele, procuramos a transgressão, afirmar as nossas idiossincrasias como se fossem únicas e incomparáveis, sublinhamos a diferença, e tudo isto é feito muitas vezes forçosamente através de alfinetes nas orelhas e lábios borrados de batom. Até que chega um momento em que percebemos que já não se trata mais de forçar uma determinada posição, ou de salientar o quão fora da norma somos, porque percebemos que somos realmente desse jeito, que somos realmente malucos e que só queremos amar e ser amados. Nesse momento, desejamos ser “mais normais” e pensamos que houve um tempo onde isso ainda era possível, no tempo onde tudo ainda parecia uma brincadeira.

Pouco tempo depois, vemo-lo a fugir incessantemente do spotlight que o persegue, até que a luz o perde de vez. Ao longo desta ação, a música vai ficando cada vez mais intensa. Esta ação representa uma dicotomia que está presente ao longo da performance: ao mesmo tempo que quer partilhar a sua perceção do mundo, foge do mundo que perceciona, entrando em confronto com o mesmo. A luz apaga-se e o performer prende o arnês a uma corda, sobe a um escadote e senta-se no topo. Acende-se um foco sobre si e, percorrendo várias tonalidades, começa a gritar até perder a voz. A intensidade da música vai na direção do abismo, do desespero, até que se coloca de pé no escadote, abre os braços, e atira-se para o vazio. Suspenso no ar, começa uma luta com o microfone gritando em cima do mesmo, tenta agarrá-lo enquanto se esperneia e se move de forma muito agitada. Um strobe vai “flashando” o decorrer deste momento. Esta ação parece figurar a luta solipsista interior do performer, parece de alguma forma dar corpo às questões existenciais e filosóficas que vão na sua cabeça e que, no fundo, são partilhadas por todes aqueles que questionam a sua vivência num mundo, numa coisa que, em última instância, ninguém sabe o que é. A exaustão vence esta luta e o performer acaba por cair no chão na posição de um corpo morto. A luz volta a apagar-se, e a música vai crescendo gerando uma tensão envolvida em sons noise, procurando gerar um ambiente nocivo, barulhento, difícil de aguentar. Na última fase deste crescendo, o performer aparece no palco e junta-se à cacofonia noise batendo com uma baqueta num pad com um kick destorcido. A qualidade da luz é agora vermelha com recortes.

A segunda parte da performance é uma declaração de amor. Não no sentido que o performer se declara à sua amada, mas na medida em que expõe o seu amor por ela ao berrar as palavras da carta que lhe escreveu no momento em que se encontrava internada no hospital. As palavras de amor e de carinho estão envolvidas numa atmosfera de destruição e na música noise, metálica e destorcida, criando um contraste interessante face aquilo que está a ser dito. Mesmo a maneira como o texto é declamado entra neste paradoxo: o texto é berrado em vez de lido claramente.

Na última parte da performance, a música muda radicalmente de registo, sendo agora um coro celestial. Nu, dá serenamente uma volta à plateia com um sorriso rasgado e forçado como se fosse um messias. Deita-se no centro do corredor da plateia e, passado pouco tempo, as luzes começam o fade out que dá fim ao espetáculo.

Rodrigo Fonseca (1995, Sintra). Estudou na António Arroio, é licenciado em História da Arte e mestre em Artes Cénicas pela FCSH/UNL. Foi cofundador da editora CusCus Discus e do festival Dia Aberto às Artes. Além da Revista Umbigo, faz crítica musical na plataforma Rimas e Batidas. É técnico de som especializado em concertos e espectáculos e artista residente da associação cultural DARC.

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