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Mapa para as estrelas: Do Inesgotável, uma exposição de Pedro Calhau

A exposição de Pedro Calhau, Do Inesgotável, com a curadoria de Mariana Marin Gaspar, é a última iniciativa de Campo Aberto/Campo Abierto, programa de cooperação transfronteiriço, desenvolvido no último triénio entre o Centro de Arte e Cultura da Fundação Eugénio de Almeida (FEA) e o Museo Extremeño e Iberoamericano de Arte Contemporáneo (MEIAC). Teve por objectivo activar a proximidade e difundir o trabalho de artistas naturais ou residentes, em cada uma das respetivas regiões: Alentejo e Extremadura.

Contudo, António Franco Dominguez (1955-2020), não viria a assistir à conclusão deste projecto, assim como à comemoração dos 25 anos do MEIAC. Aproveitamos para deixar a nossa homenagem à pessoa que foi, enquanto director do MEIAC e fundador de uma das mais extensas colecções de Arte Ibero-americana, constituída por mais de 1300 obras. É também o maior espólio de arte contemporânea portuguesa fora de Portugal e entre os representados constam: Julião Sarmento, Cabrita, Jorge Molder, Fernanda Fragateiro, Helena Almeida, Daniel Blaufuks, Eduardo Batarda, João Vieira, Calapez, Chafes, Alberto Carneiro, Ângela Ferreira, Álvaro Lapa e Paulo Mendes.

Mapa para as estrelas é, por um lado, a afirmação de um percurso e, por outro, uma possibilidade de registo documental deste momento expositivo, desvendando pistas descodificadoras para uma aproximação ao discurso de Pedro Calhau (Évora, 1983).

Começo assim, por apresentá-lo como uma genuína força de criação. Representado em colecções privadas e coorporativas, nacionais e internacionais, expõe consistentemente desde 2013, sendo Do Inesgotável a sua primeira exposição individual no âmbito institucional.

Ao piso 2 do Centro de Arte e Cultura da FEA, é convocado o corpo de trabalho que desenvolveu nos últimos 4 anos, do qual se compreende uma selecção proveniente de 5 séries, compostas por desenho, pintura, gravura, escultura, fotografia e instalação, texto e imagem. Ao longo das galerias expositivas, o percurso é propositadamente aberto, sendo que as séries organizam-se em núcleos. Contudo, a contaminação entre si é latente e a unificação obtém-se no seu todo.

NOUS

Inteligência ou pensamento motriz

O primeiro contacto com a exposição faz-se ainda no percurso para a mesma. Na escadaria entre pisos, figura numa tela de 200×180, a representação a óleo de um carro sobre um céu densamente estrelado. À partida, nada de novo, a não ser a reunião destes dois elementos: muscle cars e galáxias.

Por um lado, potentados de virilidade, de produção circunscrita a uma década[1], mas que ainda assim ocupam um lugar de culto na história popular americana, cristalizados no imaginário colectivo, por exemplo através do género cinematográfico: road movie. A procura e a fuga – pela fuga – muitas vezes associada a motivações e problemáticas existenciais. Por último, a vertigem da velocidade, que deforma (ainda mais) a estrada, enquanto realidade a percorrer: a plena distorção da percepção.

Por outro lado, a referência ao corpo celeste, que designa de “galáxias”. A sua representação invoca a ideia de imensurabilidade e tolerância perante o (universo) desconhecido. Será necessário invocar a primeira referência literária, ou discurso de poder, a que Pedro Calhau recorrer: Siderius Nancius, publicado em 1610, por Galileu Galilei. Considerado o primeiro tratado científico baseado em observações astronómicas com recurso ao telescópio, registou extraordinárias evidências científicas, que viriam a sustentar a base do desenvolvimento e estudo astronómico atuais e a valorização e acreditação dos instrumentos de observação enquanto ferramentas de oscultação.

É assim, nesta “associação livre” de referentes, que o trabalho de Pedro Calhau acontece. Territórios imaginários, sem qualquer pertença de rescrever a História.

Somos todos nós – observadores – por defeito formatados para ir ao encontro do conforto da significação, e é essa desconstrução que também lhe interessa. A estranheza de associar “famílias de objectos” – desconexos – e observar nas suas intersecções: “Eureka”[2].

Entramos por fim na galeria e somos recebidos com uma imagem diagramática[3], que nos conduz ao encontro deste raciocínio, evidenciando o acaso. É no fundo uma declaração de honestidade para com o espectador da sua obra.

A data altura, pode ler-se e passo a transcrever:

“1999-2004.

Período marcado pela imaginação. Existia uma empatia clara e inequívoca entre o que sentia e o que desenhava como se uma coisa não pudesse existir sem informar a outra (…) ”

“2013-2016.

Surge um modo de fazer que pretende afastar o “eu” do caminho do fazer. Para tal “o mundo” é organizado por familiaridades e afinidades de circunstâncias. Ligadas sobretudo por insights e percepções criativas. Aristóteles dizia que para sermos livres temos de ter regras e é por aí que eu vou. Quando tomo como minhas estas premissas estou a libertar muito mais do que condiciono.”

OUR FOUNDING FATHERS (O.F.F.)

Esta série surgiu do interesse da expressão que designa o grupo de líderes políticos que assinaram a Declaração de Independência (1776) e, mais tarde, a 1.ª Constituição Americana. Este interesse pelas bases fundadoras, daquela que é a superpotência mundial, declara uma consciência política, natural a Pedro Calhau. Estávamos no ano de 2015 e decorria a campanha presidencial de Donald Trump.

Estávamos longe de saber o quão absurdo o Futuro se viria a revelar.

Neste mesmo ano, constrói uma série de bustos em gesso, que imprimem em si uma vaga ideia de representação dos O.F.F. Estes objectos tridimensionais, passam a fazem parte da “paisagem do atelier”, forma de testar a sua resiliência. São depois submetidos a um processo de transformação de registo dimensional, quando em 2018 são fotografados e, a partir daí, desenhados.

Daí resultava uma galeria de retratos, sem crânio. Lembrando Deleuze, quando se refere ao “corpo sem órgãos”, de Francis Bacon, que renegava o exercício de carácter ilustrativo, narrativo e figurativo.

Em exposição, podemos ver 3 bustos e 15 dos 44 desenhos que constituem esta série.

COSMOS

Mapa para sítio nenhum

Desta vez, o discurso de poder advém da transcrição integral do livro Conjecturas e Refutações, de Karl Popper. Uma dissertação sobre a verdade, enquanto sinónimo de conhecimento, em oposição à ignorância.

Recorre, também, à ideia de abrigo, enquanto construção feita pelo Homem; e ao livro com um título altamente sugestivo e adequado ao contexto de Pedro Calhau: Cabin Porn: Inspiration for your quiet place somewhere. Deste extrai o léxico visual necessário para a exploração plástica, reunindo assim as condições necessárias para iniciar um novo jogo de exploração plástica. Guache, acrílico, marcadores, lápis de cor e colagem sobre papel, constituem a série de desenhos, de dimensões variadas.

A mancha de texto é um elemento unificador e transversal a todos, e a montagem aqui presente é apenas uma das muitas possíveis. As peças podem ser expostas isoladamente sem que o valor plástico e conceptual se perca. Pelo contrário, potencia a multiplicidade de leituras. Por exemplo, outros desenhos desta série foram expostos no Porto[4] e em Lisboa[5], em contexto colectivo.

Neste eco, nas obras de Pedro Calhau somos situados numa circunstância imaginária, com fortes raízes semióticas e formais. E é nessa estranheza que procura colocar o espectador numa falsa sensação de compreensão e empatia para com o referente. Sobre a série Cosmos, por exemplo, Pedro Calhau diz: “Parecem mapas, mas não são. São apenas desenho sobre papel”.

Renega-se assim a ideia clássica de Atlas e de ordenação capitular.

FIAT LUX

Faça-se (a) luz

Numa black box, vamos encontrar um momento de desconstrução e génese de todo o processo criativo do artista. Chamar-lhe-ia: a casa de partida.

Ao centro, um plano vertical, divide a sala ao meio: de um lado, uma projecção em loop; no verso, dois projectores desenham em luz de forma hipnótica e sedutora, a ideia de diagrama de Venn.

“Procura em ti, o que não encontrares em lado nenhum.”[6]

Parafraseando Mariana Marin Gaspar: “(…) reconhecemos na obra de Pedro Calhau uma generosa e insaciável curiosidade, mas também uma simplicidade que não sendo totalmente inocente, é profundamente espontânea e instintiva, afirmando-se na prática artística, enquanto ato (des)comprometido de expressão e comunicação, necessidade, direito e liberdade.”

Concluímos que o Mapa para as estrelas é em si uma rota que se faz lenta, mas firme. Procurando o encaixe natural de todas as peças, assim como assistimos no percurso expositivo Do Inesgotável.

De entrada livre, a exposição pode ser visitada até 4 de Julho, na Fundação Eugénio de Almeida, de terça a domingo, das 10h00 às 13h00 e das 14h00 às 19h00.

A 15 de julho, transita para o MEIAC, onde será acolhida e reinventada com um novo desenho expositivo.

 

[1] Veículos de alta cilindrada para uso comum, produzidos entre 1964 e 1975, nos EUA.

[2] Arquimedes de Siracusa (287 – 212 a.C).

[3] John Venn (1834-1923) dá nome ao diagrama que remonta ao séc. XIX e serve de representação gráfica à ideia de intersectam de conjuntos, ou seja, um método para a compreensão dos espaços coincidentes.

[4] Complexo Mota Galiza Galeria de Arte, Porto. TRUE NODE – Parte II Cabeça. Diogo Bolota, Hugo Bernardo e Rita Senra; Curadoria: Carolina Trigueiros. 7 de Fevereiro a 3 de Março de 2020.

[5] Duplex AIR, Lisboa. LES AMIS DU CAVAVRE EXQUIS. Catarina Silva, Consta Arouca, Francisca Carvalho, Hugo Bernardo, Nuno Henrique, Pedro Calhau, Roger Paulino; Texto: Carolina Quintela. 23 de Abril a 14 de Maio de 2021.

[6] Ribeiro, Mariano Alejandro. (2016). «Haiku da Paz» in Antes da Iluminação. Lisboa: Mariposa Azual.

 

Denise Cunha Silva não escreve ao abrigo do AO90.

Denise Cunha Silva tem 13 anos de experiência em gestão de colecções de arte, produção de exposições e direcção de publicações de especialidade. Actualmente, trabalha como produtora e Advisor para o mercado privado e é curadora independente.

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