Spatial Affairs, no Ludwig Múzeum
Spatial Affairs, a mais recente exposição no Ludwig Múzeum de Budapeste, abre uma reflexão sobre o conceito de espaço numa dimensão filosófica e, simultaneamente, prática e artística. Analisa várias problemáticas a partir da relação e da codependência entre as manifestações físicas e digitais da arte, para tal recorrendo não só a obras tecnológicas, como também a outras criações contemporâneas, principalmente de tipologia conceptual, e manifestos. A exposição está integrada em Beyond Matter – Cultural Heritage on the Verge of Virtual Reality, projeto internacional e interdisciplinar do Hertz-Labour, centro de investigação do Zentrum für Kunst und Medien Karlsruhe, que explora a (re)concepção de exposições a partir de tecnologias digitais e virtuais em espaços físicos e digitais. Como tal, Spatial Affairs foi concretizada com a parceria do ZKM e comissariada pela sua curadora e diretora do projeto Beyond Matter, Lívia Nolasco-Rózsás, em co-curadoria com Giulia Bini, curadora na EPFL Pavilions (Lausanne). Conta ainda com dois curadores assistentes do Ludwig, Jan Elantkowski e Fruzsina Feigl.
Como afirmou a diretora do museu Julia Fabényi, na inauguração da exposição, nos últimos anos, “New definitions of time and space have come to life”. Desde logo, refira-se o condicionamento espacial determinado pela atual pandemia que, por enquanto, impede a abertura do Ludwig Múzeum ao público. Em resposta, Spatial Affairs inaugurou online, com transmissão em direto, no passado dia 29 de abril, e desenvolveu uma impressionante réplica digital da exposição que, até à abertura do museu, permite a sua visita virtual, em realidade aumentada. Acrescenta-se uma programação digital paralela, principalmente a inovadora extensão de inteligência artificial intitulada Worlding, assinada pelo estúdio de design The Rodina, que se prolongará para além da data de encerramento da mostra física, a qual se encontra agendada para o próximo dia 27 de junho. Esta plataforma expõe diferentes obras digitais, que exploram espaços gerados em computador, algumas delas datadas dos anos 90, considerado o período clássico da net art. Trata-se de um ambiente multiutilizadores, interativo e de emulation controlada, que permite ao visitante a sua personificação em avatar e a deslocação por um espaço virtual inspirado no livro Calculating Space (Rechnender Raum), de Konrad Zuse. Nesta obra do engenheiro alemão, datada de 1969, o universo é descrito enquanto lugar de autómatos vivos e em evolução que se auto reproduzem e reprogramam. Através desta sua interface digital, Spatial Affairs aborda algumas das questões levantadas por reação ao desenvolvimento tecnológico no campo artístico: De que modo é que o conteúdo de uma exposição online pode desenvolver-se na forma de uma experiência espacial e adaptativa? Qual a eficácia da representação das obras de arte por avatares? Pode a exposição tornar-se um ecossistema e, recorrendo a uma expressão de Zuse, gerar um “cosmos de computação”?
Ora, como se compreende ao visitar Wordling e a versão digital da exposição do museu, a experiência do espaço é tão revelante quanto a sua fisicalidade. O mesmo assinalou, na inauguração, Peter Weibel, presidente e CEO do ZKM, acrescentando que vivemos tanto no espaço físico como no histórico e no numérico/virtual, sendo que aqui se soma a crescente possibilidade de nos situarmos em mais do que um ao mesmo tempo. É, pois, uma viagem pelas mais diversas dinâmicas espaciais que se proporciona nas galerias do Ludwig, onde a exposição se divide em várias áreas, desde as mais imersivas e fictícias às mais “físicas” e “reais”. O ponto de partida é, efetivamente, introdutório, com uma peça de Jeffrey Shaw, pioneiro em ambientes virtuais, intitulada Virtual Sculpture, de 1981, a qual consistiu num dos primeiros exercícios alguma vez realizados de realidade aumentada e virtual.
A partir daqui, inicia-se o levantamento dos vários questionamentos do projeto expositivo, nomeadamente, e com particular pertinência atual, o clash entre o natural e o tecnológico, personificado sob a forma de uma magnífica instalação de larga escala de Alicja Kwade. De título Gegebenenfalls die Wirklichkeit (2017), assemelha-se a uma grande pedra de granito, tratando-se, porém, de uma reprodução de técnicas 3D na qual se inscrevem as impressões das coordenadas da matéria original, ou seja, o que constitui a sua descrição matemática. Também de grandes dimensões, mas em material soft, já na segunda galeria, uma escultura motivada pela arquitetura generativa digital relaciona o material com o “imaterial” e o tangível com o intangível, dicotomias diluídas ao longo da exposição. Intitulada Domestic Ruins, da autoria de Andreas Angelidakis, convida o espectador a interagir por meio da manipulação das suas constituintes, performatividade que contrasta com experiências mais visuais sugeridas, por exemplo, por uma série de desenhos de Cildo Meireles, exploratória do conceito de materialidade, através de uma perspetiva próxima da virtualidade.
Da imagética fixa transita-se para a móvel, com o coletivo de design Metahaven, do qual também se apresenta o White Night before Manifesto (2007), um dos vários manifestos distribuídos na exposição, dentro dos quais se destacam o Manifesto Blanco (1946), de Lucio Fontana, e o Manifeste Dimensioniste (1936), de Károly Tamkó Sirató. Retornando aos designers, a criação vídeo intitulada Information Skies ilustra, de modo sobretudo abstrato, a presente condição virtual. Fá-lo reportando-se tanto à informação como à desinformação, ambas de maior importância e que desempenham papéis determinantes na atualidade e no quotidiano, contribuindo para o conhecimento e a ação e, simultaneamente, para a confusão e a dispersão, ambivalências que determinam a contemporaneidade.
Tais condições da tecnologia da informação vêm-se exacerbadas por uma das descobertas mais transformadoras do contexto social, cultural e artístico, a internet. Por conseguinte, Spatial Affairs propõe uma rememoração do percurso e das relevâncias histórica e prática dessa esfera da tecnologia através de várias obras, caso de uma representação digital do gabinete de Tim Berners-Lee, criador da WWW, peça de Lauren Huret. É-nos também sugerido repensar a geopolítica neste contexto, como aponta a escultura de Aleksandra Domanović. Recorde-se que, durante a disseminação da internet na década de 90, fomentou-se a convicção num ciberespaço livre de diferenças sociais e de domínios políticos, aclamado por vários, caso de John Perry Barlow na Declaration of Independence of Cyberspace (1996). Abolida a utopia, nos últimos anos torna-se mais recorrente a discussão sobre a materialidade, ou a infraestrutura, da internet, o que, como sublinha Nolasco-Rózsás, define-se enquanto central no debate da virtualidade.
Finda a incursão histórica, Spattial Affairs transporta-nos para duas áreas particularmente interativas, uma dimensão multimédia imersiva, que agrega diferentes elementos numa narrativa multilayered e, de seguida, uma mais performativa e analógica. Afirmada a experiência do espaço através da ação, incita-se ao mais elevado potencial dos sentidos visual e perceptivo com a instalação de Andrej Škufca, cujas dimensão, forma e expressão a definem enquanto transformadora tanto do espaço quanto do espírito. De notável magnitude, a peça exerce uma tensão avassaladora e impõe-se local, visual, perceptiva e esteticamente, com contornos e fisicalidade tão singulares quanto cativantes. Apesar de intitulada de Black Market, relaciona-se sobretudo com The Dark Forest of the Internet, teoria de Yancey Strickler[1] sobre a tragédia da comunicação quando movida por compulsão, necessidade, futilidade e risco. Quanto à obra de Škufca, assume-se enquanto entidade abstrata mas representativa dos confrontos entre real e irreal, natureza tangível e criação digital intangível, ou seja, diferentes dimensões espaciais. Donde, em certa medida, intersetam-se nela grande parte das matérias abordadas na exposição.
Assim se alcança o culminar da exposição, ou, como Bini apela, o seu cérebro, onde confluem vários tipos de espaços, nomeadamente o expositivo e o do museu. O mesmo se traduz numa zona heterogénea e altamente discursiva que atravessa décadas e práticas artísticas, desde os anos 50 à atualidade e desde a pintura à computação. Um dos princípios vitais a referir é o white cube, primordial na esfera da arte desde que instaurado em 1976, que se encontra trabalhado pelos artistas Adam Broomberg e Guy de Lancey, com a colaboração do próprio autor do conceito, Brian O’Doherty. Sobre o que conduziu à instauração do espaço branco expõe-se e perscruta-se através do trabalho plástico e escrito de Katarzyna Kobro.
Como se constata, o questionamento do espaço tem-se projetado ao longo do tempo, mas acentua-se nos dias de hoje, em consequência da entrada numa nova dinâmica de questões de espaço que se transcrevem, manifestam e expressam tanto por meio de materiais brutos como de algoritmos, numa colisão de diversas expressões e perspetivas com inúmeros ecos e repercussões. É, pois, nestes cruzamentos, redes e constelações, livres de limitações espaciais, que se situam, constroem e afirmam projetos tão valiosos como Spatial Affairs.
[1] Mais informação em https://flugschriftencom.files.wordpress.com/2020/03/flugschriften-6-bogna-konior-the-dark-forest-theory-of-the-internet-1.pdf