Galeria Zé dos Bois: Sonhos de Sonhos
A Galeria Zé dos Bois inaugurou três novas exposições, não escapando ao entusiasmo da reabertura dos espaços culturais.
As artistas Patrícia Almeida, Fala Mariam e AnaMary Bilbao compõem, através da sua estética individual, um conjunto de vários sonhos, com diversos protagonistas, interpelando várias impressões sensoriais. A dimensão onírica é singular, uma forma pessoal de contar uma história. Incontornavelmente, uma grande parte destes acontecimentos do subconsciente são esquecidos ao acordar. Contudo, imagino a presença da memória do que restou em forma de instantes, nestes três exemplos de representação artística.
Esta realidade nebulosa é o ponto de partida das fotografias presentes em ALL-U-NEED, de Patrícia Almeida, sendo que esta sensação percorre, como uma expansão sideral, em direção às restantes salas, desprendendo-se numa leveza desconfortável. Esta perceção, que se materializa na expressão comum de “sonhar acordado”, caracteriza a minha visita à Galeria Zé dos Bois, que desconstruo, num percurso a partir do andar de cima.
Cada objeto de Patrícia Almeida, encontrado ao longo da visita, está suspenso num zoom in contínuo, como lembranças fixas de imagens que não devem ser esquecidas. Este modo de instalação cria uma rede de ligação entre cada uma daquelas presenças, deixando associações narrativas de outras possíveis dimensões espaciais e temporais ao critério de cada um. Uma orquídea cor-de-rosa, estrategicamente sustentada ao mesmo nível estético que uma estátua de pedra, uns saltos altos, uma discoteca, uma nuvem de fumo, um vidro partido. Quem dita o valor de cada forma a não ser o próprio sonhador?
Na sala seguinte, também com fotografias de Patrícia Almeida, encontro uma sequência de frames repartidos, que relatam a rotina de uma equipa num laboratório: operam máquinas, regulam, desligam. Um grupo de homens de bata que, lembrando uma cena de um filme de ficção científica, trabalham em conjunto para manter o equilíbrio e o bom funcionamento de todos aqueles aparelhos. A presença do corpo humano e a sua própria escala, em comparação com o lugar que o circunda, parece, no entanto, muito óbvia. Num espaço tão estéril e limpo como é um laboratório, estranha-se o calor, transmitido pela presença dos trabalhadores. Estando estes dois elementos em planos distintos, pode então pensar-se no lugar do humano enquanto elemento prescindível em relação à tecnologia, passando por aí a crítica aos valores do trabalho e às questões das condições laborais, desvalorização salarial e desprezo pela mão de obra.
Descendo as escadas, as obras de Pintura-Pintura, de Fala Mariam, são a hipérbole do sonho superficial, que por entre uma neblina se desmascara lentamente e torna claros os códigos estéticos que se vão repetindo ao longo de todas as telas. Os seus objetos irreconhecíveis podem assumir para cada um de nós, como espectadores, significados diferentes. A mim, lembram-me dias de praia em que, deitada na areia, pressinto o limbo do sono pelas pálpebras fechadas. Vejo o ovóide e os tracejados a passarem quase como que arrastados por uma corrente. As cores surgem com o avançar do adormecimento e a paisagem cénica que surge é acompanhada por uma música suave e uma narração ecoada. Esta sensação de imponderabilidade transmite-se através da técnica da artista de sobreposições e transparências, atraindo assim a misticidade presente nas nuvens e paisagens que se vão desmascarando da abstração. No regresso do meu percurso pelas salas do fundo, reparo em Um espelho para Kozyrev, uma criatura marinha, um ser do espaço escuro, que com um só olho segue cada movimento meu. Esta pintura, que se distingue das outras pela sua frieza distante, faz, então, a ponte de ligação para a instalação final.
Chegando à livraria vejo, por entre as estantes, numa parede cor-de-vinho, os espectros de AnaMary Bilbao: Apologia da Floresta e Outras Impressões. A impressão em papel negro das duas peças foi, por fim, o culminar de todos, o aparecimento inesperado do indesejável dos sonhos. Um confronto direto com algo inexplicável, pesadelos envoltos num véu opaco onde apenas se reconhecem umas manchas luminosas que se sobrepõem às trevas desconhecidas. A artista apresenta uma sinalética austera, dando a todo aquele espaço uma autoridade supressiva: que, como indica o texto, são produto da ação humana, que deixou um vestígio da sua passagem, sem regresso previsto. Bipartida, a presença destes dois corpos atua sobre as ideias de distância e proximidade, o reconhecimento e a indiferença.
Neste fim em desamparo, onde qualquer explicação seria um fracasso, procuro nos livros que me rodeiam alguma distração ou outra narrativa do sonho, para voltar a subir as escadas até ao terraço e contar o que acabei de ver.
Até 5 de junho, na Galeria Zé dos Bois, em Lisboa.