A Interminável Tarefa Taxonómica, de João Paulo Serafim
Em A Interminável Tarefa Taxonómica, João Paulo Serafim (Paris, 1974) convoca o «outro lado». As fotografias realizadas entre 2009 e o presente, nos depósitos de vários museus e instituições, refletem sobre a prática e os processos de construção da memória. Ao registar o «mundo dos acervos» a imagem apaga as paredes da sala de exposição para revelar o corpo que se esconde debaixo dessa pele.
A revelação do espaço das reservas, em regra geral, vedado a curiosidade do público permite uma leitura dos processos e das escolhas que determinam as narrativas expositivas e a sua influência sobre a nossa perceção do mundo. Na prática da visibilidade e ocultação, João Paulo Serafim opta por revelar as costuras ou os mecanismos internos que, como uma grande máquina narrativa, determinam o movimento da construção do real.
A reflexão sobre os museus, tanto no sentido da reunião de curiosidades ou de elementos considerados de valor artístico e patrimonial, como da preservação da memória e da definição de identidade, confronta-nos com uma premonição que, em extremo, se pode balizar na destruição das espécies.
Toda a exposição decorre sobre o signo de uma prática de conservação, classificação e seleção que intuiu a destruição das espécies. Em Extinct Birds, um vídeo HD, de 2019, somos confrontados com espécies de aves extintas, em perigo, vulneráveis, ameaçadas. Uma relação assustadora entre imagem, percentagens e exemplos do modo de vida das sociedades contemporâneas que contribuem para o seu fim.
Durante o vídeo, a aparição de fita-cola e de fita de emergência sublinham o caráter do perigo e da catástrofe.
Esta peça ocupa a primeira sala, um espaço de articulação entre outros dois núcleos de fácil cartografia. Se nesse primeiro momento se evidencia a preocupação da ação humana sobre o natural, o segundo núcleo de fotografias constitui uma reflexão sobre os fenómenos da museografia. A colocação das imagens responde, por um lado, a uma preocupação com o ritmo, a respiração das peças e com a gravidade e, por outro, à ideia de acumulação e a uma aproximação aos Gabinetes de Curiosidades onde se misturavam coleções de vários tipos.
A construção da memória coletiva, na relação das peças A Certain Idea of a Natural History [Pavão], Imagem-objecto #4 e Blue Peacock, é equacionada enquanto elemento individual.
O pavão retratado atrás de uma pilha de materiais sobrepostos (madeira, jornais, placas de esferovite que nos remetem para a ideia de um púlpito) é proposto como uma abstração na imagem gráfica de uma caixa de cartão de lâminas de x-ato. A geometria e a gradação de cores remetem para a composição central da fotografia e para as cores das plumas. Em Blue Peacock, o processo é levado ao limite e são apenas as cores predominantes do pavão, reproduzidas em slides de gelatina, que se ligam à fotografia.
O processo da memória tem nestas peças um caráter físico, no sentido em que se pode entender essas projeções como o resultado de um esforço de memória. Quando tentamos recordar um pavão, que imagens conseguimos resgatar no fundo das lembranças?
As cores projetadas funcionam como a memória desfocada que temos das coisas. Manchas de cor, sem fronteiras certas e que guardamos como os sedimentos de uma realidade experimentada.
Estas três peças, que funcionam numa correlação de forças e significados, ocupam o altar da igreja do antigo convento. A partir delas, João Paulo Serafim age sobre o lugar desmaterializando o espaço com a projeção de um objeto ready-made e criando uma ponte para a alegoria. Purificação, espiritualidade e iluminação simbolizada pelo pavão na tradição cristã.
A Interminável Tarefa Taxonómica revela o artifício e a oficina que preside à construção da história e da memória.
Ao dar visibilidade a objetos que se ocultam na sua função de mostrar – um exemplo significativo é Empty Glass, vitrine fotografada, em 2015 –, somos colocados diante dos processos de fabricação de «certas ideais da história natural» ou a «invenção da memória».
A fotografia de João Paulo Serafim é uma mão que nos puxa para o universo da efabulação das ideias e da memória que fazemos de nós próprios e do mundo que nos rodeia.
A exposição integra o ciclo de arte contemporânea Eklektikós, uma parceria entre a Artadentro e o Museu Municipal de Faro.
Em exposição até 30 de Maio.