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Viaduto, de Renan Martins & Frankão, no DDD – Festival Dias da Dança

Viaduto estreou no dia 29 de abril de 2021 no DDD – Festival Dias da Dança, no Auditório Municipal de Gaia. Este espetáculo é uma espécie de ode à festa e à cultura popular carioca. A coreografia é de Renan Martins, a música de Frankão, a dramaturgia de Ana Rocha, o desenho de luz de Luisa L’Abbate, e é dançado e criado por João Cardoso, Mar Grifoli, Maria Ferreira Silva, Nina Botkay, e Thamiris Carvalho.

A ação começa lentamente. Uma das bailarinas senta-se no chão com uma perna para a frente e outra para trás, de costas direitas e cabeça tombada. Subtilmente vai levantando a cabeça e, à medida que se ergue, o seu olhar vai observando curiosamente o início do espetáculo. Ao seu redor, várias pequenas ações começam a acontecer em simultâneo: corpos que atravessam o palco num andar longo e desfasado, que desenrolam e enrolam tapetes de linóleo, que movem objetos, que se posicionam no espaço num jogo entre proximidade e distância, e que dão início a um movimento minucioso em vaivém que se exterioriza a partir da barriga. Apesar de ter o seu centro na barriga, é um balanço de corpo inteiro, o que confere organicidade aos corpos e à cena. Quase todos os corpos estão no chão, pelo que este movimento adquire uma qualidade de fricção, ficando cada vez mais dinâmico à medida que o tempo passa. A música drone de notas sintetizadas vai preenchendo o espaço, dando textura e densidade à composição coreográfica que vai nascendo. A cenografia está em constante mudança pela mão das bailarinas e do bailarino, até que parte deles coloca a mesa de som no canto superior direito da sala.

A partir deste momento, o movimento dos corpos acelera e concentra-se exclusivamente em si e no outro. Este movimento, que parte do chão, de um plano baixo, começa delicadamente a subir para um plano mais alto onde se vêm os corpos a verticalizar. Ainda no chão, os corpos em cena começam a relacionar-se uns com os outros, mas é fora dele que os mesmos intensificam a sua relação. O movimento começa a compor-se pelo toque no corpo do outro, ou seja, quando uma mão pousa na parte de trás do joelho do outro, o joelho flete, tal como o braço da mão que pousa nesse mesmo joelho é empurrada para trás assim que a perna se estica. Este vaivém toma conta dos corpos e as bailarinas e o bailarino vão intensificando esse movimento, trazendo também a ideia de intimidade. O espaço vai-se abrindo pela disposição dos corpos no espaço, vai ficando cada vez mais dinâmico e acelerado. A música é o fio condutor do ritmo do espetáculo. Frankão vai sobrepondo samples de sons graves e metálicos, afastando-se progressivamente da atmosfera drone, chegando à batida do funk carioca. A coreografia vai-se expandindo pelo espaço e ganhando cada vez mais ritmo: o movimento ganha a pouco e pouco uma qualidade cada vez mais dançante. Esta qualidade dançante está naturalmente associada à batida do funk carioca. A coreografia aproxima-se deliberadamente a movimentos que conhecemos do passinho carioca, aludindo ao baile (que dá nome à peça) do Viaduto de Negrão de Lima, em Madureira, na zona norte do Rio de Janeiro, e à cultura urbana negra da periferia em geral que nasceu na década de 1980 com os primeiros bailes funk nas favelas do Rio de Janeiro – muito influenciada pela cultura Hip Hop, Miami Bass, e R&B estadunidense.

A festa começa! O público é absorvido pela contemplação e experiência da mesma – seguramente que se não fosse a pandemia, a reação do público teria sido diferente. Sentimos a vontade pela parte das bailarinas e do bailarino de comungarem da festa com o espectador. O entusiasmo da sala cresce à medida que a coreografia se vai assemelhando cada vez mais às coreografias de um baile funk – especificamente, à do Viaduto. Uma das bailarinas agarra no microfone e avança para a frente do palco. Ocupa toda a parte frontal, andando, pulando, dançando da esquerda para a direita, e da direita para a esquerda. Canta simultaneamente, grita, estimula o público. Existe um crescendo de extravagância à medida que tudo isto acontece: os corpos que dançam vão entrando cada vez mais no imaginário da festa, colocando consequentemente também o público nesse lugar. Termina o funk, e volta de novo uma atmosfera densa povoada por sons drone. Frankão chega-se à frente e grita palavras que, por conta da sua atitude, parecem palavras de ordem, mas que são quase impercetíveis devido ao efeito de distorção do microfone. Na parte final da peça, começa a tocar uma música popular evangélica transportando todo o espetáculo para um outro universo. Os corpos que dançam habitam agora este novo imaginário, levando a dança ao auge da sua extravagância. Há um tanto de sarcasmo na escolha desta música, uma vez que está num lugar muito diferente do resto da peça. Contudo, não deixa de fazer sentido, visto que Viaduto acaba por ser um olhar para a cultura negra periférica do Rio de Janeiro, e que a presença das inúmeras igrejas evangélicas nessas comunidades é uma realidade muito presente e relevante para a vida daquelas pessoas.

Rodrigo Fonseca (1995, Sintra). Estudou na António Arroio, é licenciado em História da Arte e mestre em Artes Cénicas pela FCSH/UNL. Foi cofundador da editora CusCus Discus e do festival Dia Aberto às Artes. Além da Revista Umbigo, faz crítica musical na plataforma Rimas e Batidas. É técnico de som especializado em concertos e espectáculos e artista residente da associação cultural DARC.

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