Uma conversa aberta com Maria Trabulo e Kevin Boothe
Nesta conversa aberta com a artista Maria Trabulo e com Kevin Boothe, fundador da galeria Towards em Toronto, destaca-se a recente exposição Wake Up the Statues, uma investigação continuada sobre a dimensão política dos objetos culturais e o papel dos artistas nesse processo.
Maria Trabulo (Porto, 1989) é uma artista visual e investigadora que trabalha entre o Porto (PT) e Berlim (AL). A sua prática multidisciplinar escrutina o papel que as imagens e os artefactos desempenham na formação das histórias tanto pessoais como coletivas. A Towards é um projeto dividido em duas partes, que consiste numa plataforma de publicações online, bem como num espaço de exposições.
Josseline Black – Qual é a filosofia por trás da Towards, como galeria e plataforma online? Que desafios enfrenta?
Kevin Boothe – A Towards nasceu do interesse em proporcionar um espaço para os artistas cujo trabalho admiro. A galeria emergiu numa série de colaborações e considerei-a um passo orgânico seguinte a dar. Há desafios em cada exposição ou projeto que empreendemos. Os últimos doze meses têm sido um exemplo disso, mas julgo que os desafios são parte do que torna isto tão interessante. Mais do que qualquer outra coisa, a nossa ética orientadora desde o primeiro dia tem sido “deixar o artista guiar-nos”. O nosso trabalho é sermos agentes facilitadores.
JB – Adrian Heathfield tem um conceito de colaboração maravilhoso. Ele escreveu que a colaboração não é apenas ouvir o que a outra pessoa tem para dizer, mas ouvir o que ela não diz. Escutar entre as linhas, ler os silêncios. A Maria, com Wake Up the Statues, tem vindo a colaborar com diferentes ONGs a fim de arquivar registos fotográficos de artefactos que desapareceram na guerra civil na Síria. Qual é a sua experiência de colaboração?
Maria Trabulo – Essa tem sido a minha prática nos últimos anos. Não me enquadro na ideia de criar na solidão ou de conceber objetos que sirvam apenas para ser contemplados. Por essa razão, tenho necessidade de encontrar um propósito para a minha arte. Tal acaba por ser algo necessariamente político ou decorrer dum episódio sociopolítico importante. Tenho de me familiarizar com os locais onde estes episódios acontecem. Tenho ficado fascinada com as consequências que as revoltas, as guerras e as revoluções provocam, não só nas pessoas, mas também nos objetos. Lembro-me muito bem disso na última década por causa das revoltas, incluindo os movimentos em Portugal, Espanha e Grécia. Quando me mudei para Viena, encontrei pessoas que participaram na Primavera Árabe, e interessei-me pelas suas histórias. Elas conseguiam transportar os seus corpos para a Europa, mas não os seus objetos. Foi assim que cheguei ao projeto da Syrian Heritage Archive e à iniciativa dedicada à proteção da Day After Heritage, bem como a outro arquivo que não é utilizado neste projeto. Abordei-os inicialmente em 2018, porque estava a fazer outro projeto, intitulado The Reinvention of Forgetting, e estava interessada na forma como estas duas ONGs olham para estes documentos, estes dados digitais. Na altura a guerra civil não era tão violenta, mas mesmo assim muitos locais permaneciam inacessíveis. O projeto Syrian Heritage Archive tem uma equipa na Europa e equipas no terreno na Síria, não necessariamente com formação em arqueologia ou história da arte. Pagam-lhes para tirar fotografias e, ao pagarem a estes homens e mulheres para fotografar com os seus telefones, também os estão a impedir de vender os objetos que encontram. Tem sido fascinante. Tento conceber objetos que contam a história deste esforço humano por trás do processo de documentação desta herança cultural. Estas pessoas fazem-no porque sentem que é a única coisa que os irá identificar. Será através destes objetos e locais culturais comuns, que partilham o espaço denominado Síria, que eles poderão apertar as mãos novamente.
JB – Uma das coisas que me fascinam no calendário arqueológico é o facto de ser frágil e estar em fluxo. A nossa compreensão da História nunca é uma narrativa estável…
MT – Há também o tempo falsificado, ou narrativas históricas falsificadas. O que me atrai nos objetos culturais apanhados numa situação trágica é que um único objeto pode constituir uma enorme descoberta para a História. Se eu destruir tudo o que a representa a si, todas as suas fotografias e objetos pessoais, estou a apagá-la do futuro. Isto é um ato político e uma estratégia militar. Estas ONGs estão a tentar evitar que isso aconteça.
JB – Está a construir este imaginário etnográfico tridimensional. Quando olho para as fotos da exposição Wake Up the Statues na Towards, pergunto-me como é que lida com a linguagem daquilo que é exibido?
MT – Essa é uma questão muito importante. O Kevin e eu falámos muito sobre como comunicar isto a outras pessoas. O quanto deveríamos revelar. Neste caso ainda mais, pois era a primeira vez que as peças eram mostradas. Talvez seja como começou a Wake Up the Statues. O ano que passou foi a primeira vez que tentei dar sentido ao material que tinha.
KB – Foi uma questão central no início do planeamento da exposição. Em primeiro lugar, pensámos exaustivamente sobre o que incluir no texto, de modo a dar um contexto ao espectador sem ser excessivamente didático ou prescritivo. A segunda coisa que posso afirmar com toda a confiança, após ter vivido com o trabalho que não pode ser transmitido apenas através da fotografia, é a compreensão do que ele representa. É realmente algo muito pesado e, de certa forma, apresenta-se com desenleio e desassossego. Não está a tentar recriar artefactos culturais, mas sim abrir as portas a uma conversa sobre História e conflito, e sobre o que devemos a estes objetos. O trabalho é o veículo para essa conversa mais ampla. O trabalho é igualmente uma celebração da resiliência.
JB – Podemos falar de Digging the Desert, um trabalho em vídeo realizado em 2019?
MT – Tenho um grande interesse por toda esta destruição e reprodução, destruição e criação inerentes que nos rodeiam. Gosto de ir atrás de histórias de objetos que estão escondidos ou foram destruídos e, através deles, contar a história. No caso de Digging the Desert, tratava-se da maior coleção de arte moderna ocidental fora do Ocidente, oculta desde 1979 no Irão, e apenas com breves exposições, dependendo de quão flexível era o regime em vigor na altura. E assim, de repente – falamos de cerca de 100 peças –, apenas devido a uma viragem política, elas tornaram-se também políticas; essas peças, os Picassos e Jasper Johns, ficaram associadas ao Xá e ao que o regime anterior representava. Portanto, é algo que deve ser destruído ou não ser visto de todo. Não tive oportunidade de as ver, e por isso entrevistei pessoas que tinham trabalhado no museu e que as tinham visto. A partir daí, reconstruí 40 anos de história política no Irão. Em 2019, fez todo o sentido contar essa história, com a viragem à direita que a Europa tem tido nos últimos anos (além dos EUA e do Brasil).
JB – Acerca deste tema – explorar o que está oculto à vista –, qual é o seu próximo projeto?
MT – Continuarei com a Wake Up the Statues. No próximo ano, a partir de setembro, estarei em Berlim a tempo inteiro, e em contacto próximo e constante com a equipa do projeto da Syrian Heritage Archive. Provavelmente, desenvolverei este trabalho ainda mais no próximo ano ou dois. De momento, estou em Portugal e tenho feito uma residência no Museu Nacional de Arte Antiga sobre uma peça que foi derrubada acidentalmente por um turista. Foi um escândalo enorme em Portugal, também porque é o mais importante museu público de história de arte. A peça teve de ser restaurada e, após concluído o processo e feita a sua restituição à coleção principal, as pessoas passaram a vê-la apenas por causa dessa história. Tornou-se importante porque caiu e toda a gente a viu no Facebook. Foi notícia. Na minha residência no museu, tenho entrevistado todas as pessoas que em 2016 participaram no incidente e tentado reconstituir o acontecimento. O meu argumento é que ela não foi derrubada por acidente, a estátua decidiu saltar para chamar a atenção. E teve-a. No museu, mostraram-me as notícias que saíram – os jornais de história da arte chinesa falam sobre isso. Foi a forma deste arcanjo, São Miguel, se tornar superfamoso. Podemos fazer uma comparação com a atenção que nós almejamos. Pode-se olhar para o museu como um depósito de memórias e como um depósito de pessoas que pretendem ser lembradas para a posteridade.