Entrevista a Manuela Moscoso, curadora da Bienal de Liverpool 2021
Manuela Moscoso foi a Curadora Sénior no Museo Tamayo, na Cidade do México. Antes, havia sido Curadora Associada da Bienal de Cuenca 12, no Equador, e codiretora do Capacete, um programa de residências no Brasil, onde também chefiou o programa curatorial Typewriter. É cofundadora do Zarigüeya, um projeto que estimula as relações entre a arte contemporânea e a coleção pré-colombiana do Museo Casa del Alabado, no Equador. Nesta entrevista, Mocoso detalha a prática e os princípios da sua curadoria na Bienal de Liverpool, que decorre neste momento.
JB – O título da Bienal de Liverpool, da qual é a curadora, é The Stomach and The Port, na qual aborda a “definição, invenção e circulação dos corpos e os seus conhecimentos”. O que a leva a concentrar esta Bienal em Liverpool neste campo de reflexão?
MM – Antes de vir para Liverpool, trabalhava na América Latina e no México. Na altura, fui convidada a fazer a Bienal. Atravessávamos um momento importante na América do Sul e Bolsonaro tinha chegado ao poder. Antes, tivemos o socialismo do século XXI, o estabelecimento da esquerda e sentimo-nos bastante livres nessa época. Foi uma fase bastante otimista. Dez anos depois, com a queda dos preços do petróleo e a ascensão da direita, ressurgiu o estado de espírito colonial. Fiquei em choque, apercebendo-me de que muitas correntes de pensamento iriam desaparecer. Senti-me altamente ameaçada. Refleti sobre o meu papel enquanto agente e sobre aquilo que um corpo pode ser – consciente de que aquilo que é considerado um corpo advém de um processo colonial específico. De certa forma, somos todos altamente eurocêntricos. A minha pergunta tinha muito mais a ver com a forma como fazemos o mundo. O pensamento ameríndio e outras correntes indígenas são importantes, uma vez que têm as suas raízes na conexão com o ambiente, enquanto corpo dentro de outros corpos: fractal. Algumas formas de reconexão são necessárias. Foi então que vim viver para Liverpool. Começou a fazer-me sentido, pois Liverpool foi uma cidade importante no estabelecimento da modernidade. Liverpool tem uma profunda história marítima e foi um porto relevante no comércio de escravos. O ADN da cidade tem uma ligação à América. O corpo e, de alguma forma, o estômago, descentralizado, tornam-se um local de transformação. Afinal, o próprio porto é também um local de transformação e de contacto com muitos binários. De alguma maneira, são lugares interessantes para contar histórias complexas. The Stomach and The Port foi durante muito tempo um título provisório, mas manteve-se: agarrar o interior e o exterior.
JB – Desenvolveu um programa de residência intitulado Capacete (2012), no Brasil. Como é que esse projeto a levou a ponderar as várias formas de materialização do pensamento? Como é que esse projeto está associado ao que está a fazer agora?
MM – O Capacete foi um projeto interessante, iniciado por um artista na década de 90, e que eu encabecei no início dos anos 2000. Antes disso, estava a viver nos Estados Unidos, e queria regressar à América Latina. No Brasil, aprendi a situar-me e a pensar a partir de um lugar. Como é que um projeto se diferencia quando o pensamos a partir desse lugar? Essa foi a lição mais importante. Outras lições relevantes envolviam a ligação ao som, ao sónico. O Rio de Janeiro é um lugar onde isso está muito presente, onde as afro-intelectualidades estão bastante visíveis. Como ter tudo isso em conta? Não somos apenas curadores que criam um espaço para a materialização de outras práticas. Temos também de nos materializar.
JB – Ao convidar artistas para co-imaginar as ecologias das exposições, quais são algumas das suas práticas comunicativas orientadoras?
MM – Eu sou uma curadora de práticas, não de objetos; a diferença é enorme. Eu invoco quando convido. O que me interessa é toda a investigação da pessoa que estou a invocar. A crise do adiamento da Bienal não foi o fim do mundo. A minha estratégia é a de reunir. Crio um campo conceptual e, através das práticas envolvidas, sou conduzida a outros lugares. Fazer uma exposição é colocar essas práticas em relação a outras e às questões que elas apresentam. Não sou uma curadora que cria guarda-chuvas. Não quero criar qualquer tema. Fiz muito trabalho no âmbito das instituições da bienal, por isso não era um tema. Quis que ela se centrasse nas questões. É aí que reside o poder do formato da exposição, pois a base é questionar e ouvir. A comunicação é fundamental, tal como estarmos abertos às várias condições. Trata-se de contribuir e de ter a capacidade de compreender como a prática de outra pessoa é benéfica para o florescimento de outras coisas.
JB – Que modos de investigação reconhece enquanto zeitgeist, quando comunica com outros curadores e facilitadores?
MM – Já não pertencemos à geração do “curador estrela”. Por isso, espero que haja uma menor ligação à ideia do curador enquanto herói. O sucesso dos projetos tem que ver com a equipa com quem trabalhamos e com as relações que se constroem. Se queremos falar de justiça social, precisamos disso no espaço mais pequeno; é preciso criar esses espaços de voz. Creio que há mais curadores interessados nesta forma de fazer as coisas. Não é necessariamente mais fácil. O curador é uma gestor de desejos por muitas coisas e isto acarreta compromissos. Interesso-me por outros métodos de trabalho mais relacionais. É muito importante um sentido “comunal” no trabalho.
JB – Gostaria de falar consigo sobre consenso e concordância e como estes tópicos jogam com a colaboração. E o que tem a dizer sobre a dissidência nos processos colaborativos?
MM – É preciso analisar cada caso. O que estamos dispostos a negociar? De certa forma, há uma responsabilidade ética que exige aos curadores serem claros sobre o que é colocado em cima da mesa de negociação. Depois, surge o inesperado. No fim de contas, o projeto não é sobre mim e as ideias que quero colocar em marcha. É maior do que eu. O que é permitido e o que não é derivam duma perspetiva do todo. Mesmo numa situação discordante, é preciso considerar que cada projeto é sempre maior do que nós. Há conversas desconfortáveis que temos de ter e talvez não saibamos como fazer essa articulação no início, mas a insistência é necessária. Tenho estado a falar de corpos, de uma perspetiva não-ocidental, etc., mas encontro-me em Liverpool e não há qualquer ideia de algo que não seja europeu. Como contar uma história sem colocar as pessoas numa posição defensiva? Elas não querem falar de colonialismo, mas é necessário. Quero falar com as pessoas sem as alienar. Quero dialogar e não impor um pensamento. Além disso, quando defendemos o contexto, pode ser necessário falar de coisas que as pessoas não querem ouvir.
JB – Há alguma seleção de textos a que regresse continuamente e que a ajudam a gerir estes desafios?
MM – Quando vivia nos EUA, a ontologia orientada aos objetos era-me fundamental; há um texto de Levi Brian chamado Democracia dos Objetos que me serve de influência. Tem estado presente no pensamento subjacente à criação das exposições. Bruno Latour também tem sido muito importante. Há igualmente Souely Roulnik, que tive a oportunidade de trazer para o Capacete, contribuindo com ferramentas muito importantes. Sylvia Winters também tem tido um papel cimeiro. Octavia Butler em termos temporais. Estas são as pessoas que me deram ferramentas para criar os meus alicerces conceptuais. Tem tudo que ver com exercer a linhagem. Mas há artistas que nos dão outras formas de intelectualidade que não são académicas, mas ainda assim relevantes na criação de espaços de produção artística. Como é que outras formas de conhecimento podem ser materializadas e experienciadas?
JB – Após a Bienal de Liverpool, que intenções e projetos se seguem, e como é que estes estão a expandir a sua investigação?
MM – Quero ir com a minha filha e o meu namorado à praia. Fiz uma bienal em três anos, mas este último ano de atraso permitiu-me refletir sobre o trabalho enquanto parte duma conversa maior. Quero continuar com os exercícios que permitem a uma instituição tornar-se mais porosa. Como podemos reimaginar esse passado para imaginar o futuro? Como podemos contar histórias de empoderamento? Temos de criticar, mas julgo que precisamos de ascender; temos de desmontar enquanto ascendemos. Ser uma mulher curadora já torna as coisas mais difíceis à partida, algo que está a mudar, mas precisamos de continuar a fazer pressão. Precisamos de um lugar mais justo, por isso temos de insistir nas pessoas que me motivam. Quero divertir-me! Caso contrário, é demasiado complicado. Temos de nos divertir, senão perdemos o norte.