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Constelações III – uma coreografia de gestos mínimos

Que implicações tem o esbater da linha cronológica e temática, tantas vezes ponto incontornável (e até inegociável), no que é a formalização pública de uma coleção de arte? Vai-se tentando reunir os cromos, por vezes consegue-se os grandes nomes, outras vezes, as grandes obras, e em momentos mais felizes, grandes obras de grandes nomes. E como é claro, tal tipo de colecionismo é importante. Os grandes cromos representam grandes contributos. Mas a história não é feita exclusivamente dos aparentes grandes contributos, ou melhor, há grandes contributos que se mantiveram distantes dos grandes holofotes da história. Ocultados pela circunstância, pelo mau fado, ou por interesses (muitas vezes terceiros à arte), é só mais tarde que lhes é conhecido o relevo. Um problema recorrente das coleções direcionadas para os grandes cromos, é que, tal e qual como numa caderneta, a vontade é a de os juntar a todos e mostrá-los de uma assentada, recorrendo a normas, diretrizes e por fim dispositivos pré-concebidos (por essa maldita história), onde porventura se torna condição a falta de espaço para novas propostas e articulações. Quão importante é a proposta de um dispositivo que, trabalhado na horizontal, dissolva movimentos, cronologias e escalas de importâncias e valores?

(Mas quer dizer, há critérios e expetativas a cumprir, não? – diz que sim.)

Constelações (III: uma coreografia de gestos mínimos) é uma exposição (é um momento) que faz parte de um projeto, que sob diferentes signos, tem vindo a ser desenvolvido, desde 2011 por Ana Rito e Hugo Barata. A ideia é a de propor relações entre obras de arte específicas e que estas funcionem enquanto constelações – um desenho (fictício) esboçado através da ligação de pontos referenciais reais (,ora, estrelas!). As questões essenciais desta metáfora residem no facto de, primeiro, cada acréscimo ou subtração de uma ou mais estrelas resulta num diferente tipo de desenho (e constelação) e, em segundo, os diferentes desenhos que resultam deste conectar das estrelas, ainda que categoricamente fictícios, são instrumentos produtores de relações e ideias. O que a Ana e o Hugo fazem em Constelações, é adotar este gesto de alguma forma intuitivo e natural ao homem – o de pressagiar linhas entre as coisas – e fazer dele um gesto operativo, onde, a partir de um índex já construído, reformulam e aprofundam relações já existentes através de novos diálogos.

Como o título indica, este é já um terceiro momento deste projeto (investigação), que tem a exposição permanente do Museu Coleção Berardo enquanto (e adotando termos utilizados pelos curadores) mesa de trabalho, tabuleiro de jogo. Abrangendo agora o segundo piso do museu, onde está alojada uma seleção de obras-de-arte produzidas entre 1900-1950, este terceiro momento conta com várias intervenções que se estendem por todo o piso. Assim como nos dois momentos anteriores (ambos entregues à parte da coleção dedicada à arte pós-1960), o objetivo é o de criar condições favoráveis ao encontro. Estes encontros apresentam por sua vez diferentes naturezas formais, não se cingindo a uma regra ou norma, mas antes a cinco ou seis (ou mais), assumindo, ao longo da exposição, diferentes gestos criadores de relações, focados em diferentes tipos de empatias e conexões.

Todo este trabalho tem por base três movimentos fundamentais: o de escavar a própria coleção e trazer à luz do dia obras que, por falta de interesse ou “disponibilidade”, têm sido mantidas dentro de caixas por demasiado tempo; o de mexer e remexer obras já presentes na exposição permanente, com o objetivo de um ativar ou reavivar destas; e por fim, o introduzir de obras externas à coleção (ainda que temporariamente).

(Constelações III:) uma coreografia de gestos mínimos – bastou abrir e dispor o conteúdo da Boîte (serie c), um exemplar do famoso museu portátil de Duchamp, para reviver uma obra que já há demasiados anos permanecia anémica, obliterada pelo próprio estatuto, reduzida a uma representação de si própria.

Os gestos, ainda que declaradamente mínimos, vão, ao longo do percurso, mostrando-se imensos em profundidade e alcance. Principalmente por destes advir um sentimento de familiaridade, como se as alterações feitas – os diálogos e relações propostas – fossem de alguma forma “óbvias” – algo como o manifestar de uma coisa que sempre esteve lá, mas que faltava ser ativada. Os diálogos estabelecidos são próximos, tangíveis e vívidos.

Logo à entrada do piso, na ala dedicada ao cubismo, podemos ver, entre uma pequena pintura de Picasso e uma escultura de Modigliani, e dispostas verticalmente pela parede, numa organização livre e em prateleiras feitas à medida, um conjunto de onze máscaras, dez africanas e uma do artista português Francisco Tropa. As máscaras africanas, recorrentemente expressas, de forma utilitária, enquanto referência longínqua e entendidas enquanto um meio para um fim, têm aqui o mesmo estatuto de obra-de-arte que a pintura de Picasso ou a escultura de Modigliani, e não só é quebrada a relação de dependência, como ainda mostra, com a obra de Tropa, a transtemporalidade do conceito e objeto “máscara”.

São vários os gestos e relações construídas que podemos ir observando ao longo de todo o segundo piso. Podemos ver relações de influências diretas, como é o caso de uma nova sala, dedicada a Brâncuși e que é dividida entre este e Claire Santa Coloma no formalizar de uma relação de influência já conhecida; onde, se por um lado temos esculturas de Santa Coloma, de Brâncuși temos fotografias de estúdio e das suas peças, exaltando o universalismo e intemporalidade de um e a pertinência plástica de outro; temos também um novo construtivismo que não só mantém os desenhos já pertencentes à exposição permanente como, na perspetiva de sugerir ao observador o que potencialmente foi o movimento no seu todo, inclui agora uma escultura em madeira e ferro de Ângela Ferreira e ainda um excerto do filme man with a movie camera de Dziga Vertov. Já ao dadaísmo foi-lhe renovada a imagem. Movimento comumente associado a obras de desenho e pintura, vemos a este segmento ser-lhe incluído a imagem em movimento e ainda uma peça sonora, géneros largamente associados a práticas artísticas mais tardias. E se os curadores por um lado procuram fortificar ou dar profundidade o que é a experiência e representação, muitas vezes curta, destes movimentos já representados na coleção, por outro focam em pontos de convergências entre eles e ainda com a contemporaneidade. Como tal, e ainda com o mesmo sentimento de naturalidade, podemos ver em relação direta, um vídeo de João Penalva ao lado de uma pintura de Francis Bacon e ainda uma pintura de Lucio Fontana acompanhado de um conjunto de fotografias de Helena Almeida, entre uns tantos outros.

São no total 24 as constelações que constituem este terceiro momento e intervenção. Cada constelação representa um ponto de partida para um novo diálogo, seja este feito a partir de novas relações, como de relações anteriormente ensaiadas, ou até já historicamente conhecidas; umas de natureza formal, outras informal. Numa procura por uma renovada articulação do que é a exposição permanente de forma a encontrar, sem artifícios ou artimanhas, estímulos dentro das linhas já traçadas, na ambição de enriquecer a representação de movimentos e de, acima de tudo, tornar explícito a transversalidade temporal da arte e a sua capacidade de comunicar.

Rui Gueifão (Almada, 1993), vive e trabalha em Lisboa. Licenciado em Artes Plásticas na ESAD.CR e mestrando em Filosofia-Estética na FCSH – Universidade Nova de Lisboa. Já colaborou com diferentes instituições e espaços dedicados à arte contemporânea, como o Museu Fundação Coleção Berardo, Caroline Pàges Gallery e Galeria Baginski. Tem vindo, desde 2018, a produzir diferentes tipos de textos, já tendo contribuído para publicações e textos de exposições. Desenvolve e expõe o seu trabalho artístico desde 2015.

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