Entrevista a Frans van Lent
Frans van Lent apresenta L’espace de vingt-quatre heures nesta que é a quarta capa do mês de 2021, um vídeo de um caminho gravado pelo artista em várias alturas do dia. O conceito sistemático do vídeo é quase como um relógio solar, em contraste com o intimismo da gravação. Tal representa um trabalho clínico na sua conceção e pessoal no seu resultado. O artista descreve as suas obras como “métodos para criar experiências”, centrando os seus esforços no processo que o traz a essas mesmas experiências. Noutros trabalhos, como Pain Location ou Unnoticed Art Festival, o artista explora como o involuntário pode ser executado voluntariamente; a forma como a mente, o corpo e o espaço se podem tornar parte de um organismo que funciona como um todo, testando a relação com o seu ambiente e o seu público. Frans van Lent continua a explorar os limites da experiência da arte nas suas práticas artísticas e curatoriais, recriando conceitos de produção e exposição de arte nos seus níveis mais elementares.
Margarida Oliveira – Conduza-nos pela conceção de L’espace de vingt-quatre heures.
Frans van Lent – Durante alguns meses por ano, vivo numa casa desta aldeia. Percorri este caminho várias vezes por dia, ao ponto de se tornar um ritual, uma necessidade. Comecei a identificar a caminhada com um ritmo de duas formas: primeiro, cada caminhada leva mais ou menos o mesmo tempo; segundo, as caminhadas repetidas definem a ordem dos meus dias.
Para Pain Location (2019), comecei a treinar-me para desenvolver uma dor de cabeça num determinado ponto do caminho. Durante trinta dias, tentei treinar o meu corpo para conectar esse lugar específico a um determinado ponto da minha cabeça (imediatamente atrás das minhas têmporas). Ao fazê-lo, conectei a forma do caminho com a topografia do meu cérebro.
Em julho de 2020, decidi conectar literalmente a caminhada à experiência de passar o tempo. A cada hora das 24, andava pelo caminho e filmava essa ação. Este circuito repetitivo transformou o caminho num relógio em tamanho real. Editei um vídeo onde partes de cada uma das caminhadas cria uma outra. Percebi que a tradução francesa de “24 horas” é L’espace de vingt-quatre heures – o que, de forma perfeita, liga a noção de tempo com a noção de espaço.
MO – Porquê esta aldeia?
FVL – Poderia ter acontecido em muitas outras. Tem que ver, acima de tudo, com uma questão pessoal. Durante muitos anos, vivi uma parte de cada ano nesta aldeia. Isso permite-me olhá-la para lá de um ponto de vista romântico e fazer uma reflexão basilar.
MO – Dou por mim a olhar para o seu trabalho como um equilíbrio entre solidão e comunidade. Ao filmar L’espace de vingt-quatre heures sozinho, acaba por convidar o público a vivê-lo consigo num período diferente, como uma experiência simultaneamente pessoal e partilhada. Tendo em conta o conceito de “arte despercebida” e a forma como questionou a questão da interação com o trabalho artístico, de que forma é que a relação com o público influenciou a sua prática artística?
FVL – O âmago do meu trabalho não está normalmente na apresentação visual das minhas próprias experiências. Sou simplesmente a primeira pessoa a executar os trabalhos. Qualquer um pode fazê-los e, com isso, criar as suas próprias experiências. Todas as experiências são essencialmente pessoais. Sou um humano entre tantos outros. Muitas obras consistem apenas num texto escrito. Encaro os trabalhos como métodos descritos para criar experiências. O facto de ser um artista dá-me a oportunidade de investigar este tipo de coisas. Mas as minhas experiências não estão num nível diferente, apenas têm outro foco.
MO – O processo curatorial de um festival de performances pode ser visto como uma performance em si mesma, uma extensão da sua prática artística através dos outros. Qual é a sua abordagem à curadoria no Unnoticed Art Festival?
FVL – Ao longo do Unnoticed Art Festival, os trabalhos são executados no seu habitat predileto. Não num contexto artístico e numa relação hierárquica entre artista e público, mas por pessoas anónimas entre outras pessoas anónimas. Todos com os seus objetivos e atitudes. E este ser “anónimo” concede ao intérprete uma certa liberdade de ação. Um espaço privado no domínio público. Novamente, o importante são estas experiências pessoais, são elas a base do meu processo artístico.
MO – Enquanto artista multidisciplinar, o que constitui o processo de materialização das sua ideias?
FVL – Em primeiro lugar, concentro-me sempre no processo do trabalho. O processo é o próprio trabalho. A forma material é apenas o resíduo desse processo. Ela segue os seus caminhos e comunica o trabalho da forma mais clara possível. No início, o resultado final é aberto e indefinido, o processo pode conduzir a qualquer coisa.
MO – Ao ver os seus vídeos e a sua relação com aquilo que é atualmente um cenário europeu – a nossa relação com o tempo, as diferentes velocidades que este pode assumir em relação ao mundo interior e exterior, bem como em relação a nós próprios e às nossas comunidades –, acho interessante que o tema do tempo se tenha tornado mais relevante à medida que a sociedade é forçada a enfrentá-lo sem o alívio da velocidade. Como é que o tempo e a sua relação com o espaço se tornaram o foco principal do seu trabalho?
FVL – A orientação tem sido sempre uma pulsão básica no meu trabalho. E a orientação envolve o espaço e o tempo. Em Crossing (2009), a combinação destes aspetos é decisiva:
Um carro faz cinco vezes o mesmo percurso. Cada vez que percorre a rota, passa por um homem que, muito lentamente – cada passo dado tem menos de um centímetro –, atravessa a estrada. À quinta passagem (trinta minutos depois), o homem chega finalmente ao outro lado da estrada. O carro termina a última parte do percurso e para.
MO – Pode desenvolver o conceito de “orientação”?
FVL – Em Crossing, ambos os artistas estão presos nas suas posições. O homem que atravessa a rua está totalmente focado na sua atividade. E há a mulher no carro, a conduzir rapidamente pela floresta e a ser confrontada cinco vezes com o homem em diferentes fases do seu percurso. Ela não consegue reparar naquele movimento, porque está presa na sua perceção do tempo. Ele parece apenas parado em diferentes pontos da estrada. Quando se aproxima do homem, ela abranda e conduz cuidadosamente à sua volta. Ambos permanecem nas suas próprias realidades, os seus mundos encontram-se, mas nunca se interligam.
Em Raam (2006), um homem está numa sala. Através da janela, podemos ver ramos e folhas de uma árvore e carros a passar. A cada minuto, o homem repete exatamente a mesma atividade. Ele caminha até à janela, olha para o exterior e toca no vidro com a mão e a testa. A janela parece ser a fronteira entre o tempo cíclico e linear.
Neste trabalho, existe uma relação interessante entre a testa do homem e as têmporas mencionadas em Pain Location. São ambas lugares de trânsito entre os espaços interno e externo.
MO – Há um lado ritualístico no seu trabalho, a repetição de um movimento, a sua documentação. Identifica este tipo de rituais na sua vida?
FVL – Ao repetirmos um movimento ou padrão, o seu significado original é-nos retirado. O movimento torna-se outra coisa, a passos de distância da vida mundana. A repetição é um método de desfamiliarização. Esta funcionalidade pode ser também a principal qualidade do ritual enquanto tal.
MO – Projetos futuros?
FVL – O principal é um projeto de residência na AADK/Espanha, em Múrcia, em outubro/novembro deste ano. O tema da minha investigação será Subjective Topography.