Brave New Vaga
Estarei, porventura, a ser audaciosa, mas parece-me que em terras insulares, qualquer descrição de espaço acaba por indagar inevitavelmente sobre o território, cuja abstração não é fácil uma vez que o mesmo se encontra tão presente: a natureza é mais vigorosa, o solo afigura-se mais percetível, quiçá, mais controlável pelos nossos passos, o horizonte é sempre visível, vive-se circunscrito a limites bem definidos numa ilha, concretos, indubitáveis e finitamente atingíveis. Como deixar de o pensar? Como abstrair dessa realidade (de)limitada territorialmente? Vaga, o novo projeto da associação Anda&Fala, que organiza o festival Walk&Talk em Ponta Delgada, desde 2011, reforça essa ideia de ilha desde logo pela premissa inscrita no nome; aliás, faz jus a essa geografia e nasce da combinação perfeita entre a dinâmica territorial e intencional. Segundo o dicionário da língua portuguesa, ‘vaga’ remete para a iminência com o mar, aludindo enquanto onda, à renovação de forças e energias ou, em sentido figurado, à agitação que produz irreverência, oportunidade e (pro)atividade; tal como o projeto se assume.
Desde o seu estabelecimento que o Walk&Talk abala São Miguel: um novo paradigma de produção e programação cultural nos Açores, que introduziu novos discursos, estéticas e modos de fazer. Assim, se têm impulsionado novas e plurais perceções da ilha e cultivado fluxos ativos de relações bidirecionais com o resto do mundo. Mas a vaga olha para dentro e centra-se no envolvente insular, atuando por proximidade ao território e às comunidades residentes. Vaga é a materialização de uma vontade cultivada há muito tempo no seio da associação que este ano faz 10 anos. Perante a ausência de um espaço sede, que de forma instável obrigou nos últimos anos a uma ocupação transitória em sucessivos locais de Ponta Delgada, a vaga corporalizou finalmente a noção de casa, abrindo um mar de possibilidades, ao conferir continuidade, autonomia e independência programática. O resto advirá do dia-a-dia, já que há fluxos e dinâmicas só percebidos ocupando o espaço, fruto das experiências a/efetivas.
A área escolhida de Ponta Delgada, retirada do coração da cidade, e que reflete simbolicamente a lógica periférica tão harmónica ao projeto, foi estrategicamente pensada, sendo nesse sentido que a cidade começa a difundir-se.
Vaga é um novo espaço de arte – produção, experimentação e conhecimento – que se detém sobre as artes contemporâneas, através de uma programação multidisciplinar, desde o formato expositivo, à performance, ciclos de cinema, conversas ou masterclasses. Objetivo? O de conectar: seja artistas com artistas, artistas com o público, ou a todos com a arte, enquanto se tenta quebrar a barreira relacional com a arte contemporânea, vista com frequência como algo temido, iminentemente fechado em si mesmo.
Carregando toda a herança do trabalho desenvolvido ao longo destes anos pela associação, a vaga existe enquanto entidade de gestão independente; não como galeria comercial, nem com peso institucional, mas como um espaço autónomo de permanência diária, fértil em oportunidades. Foi assim que a própria família Anda&Fala deixou de ser “um corpo estranho”, cuja fisicalidade permitiu ao projeto constituir-se como uma plataforma de excelência para nutrir relações: um desbloqueador de ambições, visões e criações, sobretudo à comunidade artística residente que, muitas vezes, “não encontra feedback à sua investigação e produção artística”. Por isso, talvez, a sua característica mais proeminente seja a (constante) porta aberta, que metaforicamente revela recetividade a todos aqueles que querem conhecer o espaço, criar ou simplesmente experimentar. Por exemplo, artistas que necessitam de espaço para criar e testar. São destas relações que se cultivam amigos do projeto, potenciais parcerias, às quais muito acrescentam as assembleias, fontes ricas de interação e opinião dos pares e comunidades interessadas que, uma vez por mês, partilham ideias num debate aberto ao público. O projeto vive assim de um dar e receber, fluído, honesto e interessado, que alimenta a máquina constantemente (re)organizada em função da intenção, da necessidade e daquilo que vai de encontro à sua missão e valores originais.
A este nível, a arquitetura deste armazém cultural – da autoria dos Mezzo Atelier – foi especialmente desenhada para configurar o tríptico ideal: galeria, oficina e casa, a reunião perfeita num só espaço, das condições logísticas e emocionais que propiciam a produção de qualquer iniciativa desde o seu início ao fim, isto é, conjugando sob o mesmo teto, o trabalho com a apresentação do resultado final. A galeria com duas salas, destina-se a uma programação expositiva, em resultado de temporadas, cujo tema é previamente definido; a oficina pretende servir aos artistas em residência e proporcionar condições para a execução de trabalhos de outros interessados; enquanto a casa dispõe-se a receber artistas em residência, com um espaço comum para a discussão das dinâmicas de produção.
A programação define-se em temporadas e intervalos (momentos entre temporadas que favorecem o foco e acompanhamento de artistas e trabalho de oficina, bem como uma programação mais livre, por vezes em resposta à espontaneidade de estímulos e oportunidades). Cada temporada, com duração aproximada de 3 meses, geralmente inicia-se com uma exposição, a partir da qual se desenvolvem eventos paralelos sob a mesma temática. Em dezembro de 2020, aquando da abertura oficial da primeira temporada, a exposição coletiva We Never Say Never, reuniu 18 forças motrizes açorianas, exemplo da geração em circulação, presente em simultâneos espaços e correndo nos interstícios de várias disciplinas, que se aproxima pela recusa ao normatismo, a sua forma de afirmação no mundo.
A esta resiliência inscrita na primeira exposição, está subjacente esta característica do projeto vaga que, nascido a meias com a pandemia, ergueu-se do estoicismo e da responsabilidade acrescida face às restrições. O que poderia ser limitador, todavia, revelou-se uma pausa programática essencial para repensar e arquitetar planos futuros. A porta, essa continuará aberta para mostrar que “há condições de encontro criadas, seguras e confortáveis para quem queira participar”. Hoje ambiciona-se propriedade, com liberdade programática e honrando o compromisso com todos os envolvidos. Para que a vaga se firme tal como se apresenta: um lugar de aprendizagem, renovação e descoberta, aliado e mediador da produção artística contemporânea; ao mesmo tempo, uma “lupa ao que esta comunidade tem a dizer”.
Pautado por uma lógica de comunalidade que defende que para que se chegue a todos, todas as partes devem ser ouvidas, em prol de um bem comum, a vaga move já muitas ondas neste espaço. Mas, para trabalhar para todos, não basta ter a porta aberta, nem tampouco anunciá-lo. Trabalhar em comunidades e no contexto implica, neste caso, um trabalho feito a partir da programação criada e da dinâmica conseguida com os artistas presentes. É um processo contínuo de estabelecimento de relações, que necessita de tempo para promover envolvimento e firmar proximidades; e só assim se desconstrói estigmas, quebram fronteiras e ganha confiança. Para o futuro, quem sabe, e uma vez inscrita na região, a vaga poderá estender-se a outras costas, sejam elas insulares ou transatlânticas. Será esta uma ideia utópica? Como partilhou Eduardo Galeano, “A utopia está lá no horizonte. (…) Por mais que eu caminhe, jamais alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isso: para que eu não deixe de caminhar.”
A vaga, como um movimento híbrido obstinado, dá à costa em Ponta Delgada, com a vontade de dar ouvido e propagar as novas vozes artísticas que operam na ilha e que vieram para renovar e fortalecer o potencial criador de São Miguel. Segundo uma postura aberta, inclusiva e jovial que começa aqui a escrever os primeiros passos, esta é já uma viagem que convida a mantermo-nos por perto, atentos e agitados. Nós, público, mesmo com a vaga em “intervalo” até junho, certamente que estaremos alerta e ao virar da esquina, pois tal como eles: we never say never, do we?