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Las Palmas, Apofenia – um case study

Em 2017 um grupo de quatro artistas jovens fundou um dos espaços de arte contemporânea mais insólitos em Lisboa. Radical, vibrante, este grupo viria a criar um lugar inaudito para a experimentação: um laboratório de jovens, cujas obras espelhavam o universo enérgico e por vezes entrópico, caótico, de artistas recentemente formados. Concebido por Aires de Gameiro, Hugo Gomes, Nuno Ferreira e Pedro Cabrita Paiva, o projeto Las Palmas não era o único espaço[1] gerido por artistas em Lisboa, mas era o que mais se destacava mercê de uma estratégia desinteressada de comunicação e de curadoria. Entretanto, o Las Palmas acolheu muitos nomes portugueses e estrangeiros no seu espaço, deixando um vinco indelével na história da arte contemporânea e da curadoria em Portugal.

Mas esta é uma brevíssima historiografia que pouco discorre sobre a autêntica força motriz do Las Palmas.

Há algo de verdadeiramente nobre, generoso e agregador no Las Palmas, que soube navegar as vicissitudes e precariedades inerentes aos contextos das ditas “instalações provisórias” (expressão cunhada por Sandra Vieira Jürgens) e que, no fundo, são os contextos atuais de toda a arte contemporânea, da cultura e dos jovens artistas.

Os que tiveram a oportunidade de assistir a uma das inaugurações sentiram, com certeza, esse ambiente fraterno, de partilha e cumplicidade entre os artistas que então expunham, os que já expuseram, os que queriam aí expor, os que iriam lá mostrar meses ou semanas depois e os que conceberam este projeto. Uma turba de gente alinhada conceptualmente, num mesmo rapport, que marca uma geração aberta para o humor, a ironia, a pós-ironia (ou a nova sinceridade) e a experimentação da cor, das formas e dos materiais. Jovens que, como outros no passado, romperam com o positivismo taxonómico das categorias ou das categorizações plásticas e artísticas e abriram espaço para a dúvida, a discussão e o riso.

É importante frisar que este não era um espaço com pretensões institucionais. Nunca foi, nem parece ter sido em circunstância ou momento algum. Como tal, era absolutamente livre para ser um projeto de amigos, para amigos e para aqueles que com eles se identificassem. E o potencial da ideia estava aí.

Três anos volvidos, depois de muitas exposições e três espaços diferentes, o nomadismo angariador do Las Palmas somou muitas coletivas e individuais e um portefólio assaz curioso de projetos e obras. Mas a exigência do projeto e a força das circunstâncias ditaram uma pausa nesta plataforma e o futuro está por desenhar.

A história dos espaços de arte não-institucionais ou de espaços geridos por artistas tem mostrado duas vias de desenvolvimento para os mesmos: ou se extinguem em poucos anos, deixando na memória uma mão cheia de eventos e episódios marcantes que, não obstante a sua fugacidade, viriam a marcar artistas, curadores, galeristas e períodos de uma cidade; ou caminham paulatinamente no sentido da sua institucionalização, lato sensu, assegurando o seu legado, mas comprometendo inexoravelmente o espírito fundacional que os inspirou. São, contudo, mais os que se extinguem do que os que perseveram, entrando na lógica profunda do sistema da arte.

E se a exposição Apofenia, do Las Palmas, parece ser, agora, um exercício de institucionalização indireta – colando o projeto às instituições organizadoras e acolhedoras, conferindo-lhes um estatuto e uma aura que provavelmente lhes é indiferente –, a verdade é que o mais correto é vemo-la antes como um momento celebrativo e uma viragem no conceito curatorial – que procura em primeira instância a hibridização informal e informe do Las Palmas para expor, comungando também dos riscos que lhe são inerentes. Essa propensão para o “risco” e para o “erro” estão, aliás, na base do projeto (como já haviam referido numa entrevista à Umbigo #71 em 2019), sem que tivesse sido subtraída a esta exposição e tendo sido comummente partilhada por todos os artistas presentes. Porque o que está exposto não é apenas a obra dos quatro fundadores: é a obra destes, mais a de vários artistas que com eles trabalharam naquele espaço, tão vivo e festivo, de certo modo dilatando o conceito de “reação em cadeia” que subentende esta mostra.

Nesta perspetiva, Apofenia é um ponto de encontro e reencontro com o trabalho desenvolvido depois do Las Palmas, e é uma continuação e uma revisão dos nomes e autores envolvidos, bem como a reflexão sobre a influência do alternativo[2] (que persiste, como demostra Vieira Jürgens) sobre o institucional. Ou seja, é um lugar também para a maturação e para alguma maturidade.

A identidade do espaço, a sua característica definidora, é a cor – o rosa. Isto é, a cor faz o lugar. Por isso o projeto pôde ocupar tantos espaços diferentes, em distintas zonas da cidade de Lisboa, sem nunca perder a sua matriz inicial. Dito isto, o espaço não era tão ou mais importante quanto a ideia do mesmo. O rosa é um dispositivo artístico, curatorial, arquitetónico, dinâmico e flexível, agora aplicado, no espaço da Fidelidade Arte, exatamente com a mesma linha de pensamento dos três espaços anteriormente ocupados pelo Las Palmas. E este dispositivo serviu de comunicação com o exterior, ao mesmo tempo que serviu de ponto de partida para várias exposições e fomentou o espírito de festa – tão importante nos movimentos alternativos do passado e que se veio perdendo paulatinamente.

Apofenia concebe-se sob o ponto vista da incerteza, da similitude – é a expressão científica que designa a semelhança que encontramos na forma das nuvens com pessoas, animais ou objetos. As obras são o que parecem ser, sem o serem exatamente. Existem num estado de dúvida e questionamento contínuo, perpétuo, promovendo o riso, a surpresa ou a reinvenção dos métodos de produção, sobretudo os pictóricos. Muitos dos artistas aqui presentes são os Diógenes dos tempos modernos – dissidentes, cínicos (da extinta escola do cinismo grego), indiferentes e preocupados (mas não muito), cosmopolitas e até obscenos.

Em Aires de Gameiro, Eduardo Fonseca e Silva & Francisca Valador, Hugo Brazão e Nuno Ferreira é a hibridização da pintura, da cor e da escultura que se constroem para lá da sua materialidade e desenho habituais, jogando com escalas, materiais e o movimento. O humor e a traficância de signos, significados e linguagens são propostos por Catherine Telford-Keogh, Jason Dodge, José Taborda, Pedro Cabrita Paiva, os Primeira Desordem e Stefan Klein. O desenho é trabalhado entre a abstração e a representação em Arno Beck, ainda Aires de Gameiro e Maria Miguel von Hafe. Lito Kattou e Rowena Harris propõem objetos escultóricos: um recorrendo a formas mais ou menos radicais e antropomórficas, outra puxando pelo minimalismo e a desconstrução. E, finalmente, Holly Hendry, que instala uma série de máquinas de semelhança vagamente orgânica e escatológica, que oscilam entre o assombro e o espanto.

Apofenia é um triunfo da informalidade e de uma cultura de exposições inédita em Portugal, capaz de injetar humor e riso num sistema excessivamente formal e arreigado em modos de atuação e de agência previsíveis. É, neste contexto, um caso de estudo – desses que surgiram nos finais da década de 1960 e cimentaram uma plataforma de reflexão e experimentação para a arte, e que, desde então, reafirmam a existência de uma “independência”, de uma “autonomia”, de uma “alternativa” e de uma “informalidade”[3].

Não sendo a primeira exposição deste coletivo de artistas – já haviam exposto enquanto tal na galeria Lehmann + Silva, Porto, em 2020 –, Apofenia é, no entanto, uma mostra mais vasta, sem ser necessariamente enciclopédica ou encerrada, que trata do passado do projeto e prepara um futuro que passará, como muitos outros similares, e numa terceira via de desenvolvimento para estas “instalações provisórias”, pela transformação do mesmo.

Apofenia pode ser vista até 26 de fevereiro na Fidelidade Arte, em Lisboa. De 19 de março a 6 de junho na Culturgest Porto. Com a curadoria de Bruno Marchand.

 

[1] A Umbigo tem vindo a compilar – desde há quatro números – uma série de artist-run spaces com a edição de Carolina Trigueiros. O Las Palmas foi o primeiro projeto contemplado para esta secção.

[2] Recorrendo à definição preconizada por Sandra Vieira Jürgens, alternativo é um termo que resulta “de um processo radical e generalizado de interrogação do instituído e do normativo, com repercussões na constituição de uma rede ampla de organizações e estruturas a partir das quais se alteram práticas, teorias, modos de produção e formas de fazer inscritas nas definições existentes de produção criativa e de circulação e instalação dos trabalhos artísticos.” (Jürgens, 2016: 177)

[3] Características gerais de projetos análogos ao Las Plamas, estabelecidas, estudadas e desenvolvidas pela crítica e curadora Sandra Vieira Jürgens em Instalações Provisórias: Independência, autonomia, alternativa e informalidade. Artistas e exposições em Portugal no século XX (2016).

José Rui Pardal Pina (n. 1988), mestre em arquitetura pelo I.S.T. em 2012. Em 2016 ingressou na Pós-graduação em Curadoria de Arte na FCSH-UNL e começou a colaborar na revista Umbigo. Curador do Diálogos (2018-), um projeto editorial que faz a ponte entre artistas e museus ou instituições culturais e científicas, não afetas à arte contemporânea.

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