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As formas do pensamento – Martim Brion na Galeria Sá da Costa

“A descrição das formas, ou o princípio da compreensibilidade do existente, através da centração sobre as formas, pode revelar-se insuficiente para conhecer seja o que for, mas talvez permita fazer falar o que é silencioso (…)

Maria Filomena Molder, em O Pensamento da Forma: Consentimento e Louvor do Caminho Intermédio

 

Martim Brion apresentou recentemente na Galeria Sá da Costa, em Lisboa, a exposição Pontos de Intersecção. Este título enuncia explicitamente um dos aspectos centrais da pesquisa actual do artista que consiste no desvanecimento – ou, até, mesmo, na abolição – das fronteiras que vulgarmente separam a pintura da escultura e estas da fotografia.

Considerado isoladamente, este tópico do trabalho de Martim Brion parece estar em sintonia com o que Donald Judd expôs no seu manifesto Specific Objects (publicado em 1965), no qual preconizava o alargamento do campo da arte em sentido lato, através da superação dos géneros e dos estilos, e a anulação da presença artesanal da mão do artista na obra de arte – declarações utópicas que levaram Robert Smithson a considerar a arquitectura de Judd feita de antimatéria.

O mesmo se poderia dizer das esculturas policromadas – em poliuretano sobre MDF – e das inúmeras séries fotográficas (em papel fotográfico, acrílico e alumínio) que Martim Brion trouxe, então, a público. O brilho esmaltado das esculturas pintadas e das fotografias expostas e o seu acabamento perfeito, aliados ao policromatismo vibrante que emanam, sugerem uma imaterialidade intrínseca das obras e instauram no espaço uma realidade paralela que nos provoca uma sensação de inacessibilidade; um território vibrátil que se instituí como uma prerrogativa exclusiva da criação artística, no qual os sentidos, a percepção e o pensamento que deles deriva são como que compactados numa única faculdade cognitiva, concentrada exclusivamente na essência do sensível – na forma ainda “enquanto vestígio de uma realidade sem forma” (Plotino, Eneidas, VI); uma energia viva que irradia dos objectos para o espaço e afecta a nossa percepção do conjunto. Neste sentido, esta mostra de Martim Brion era, também, uma instalação, cuja identidade e coerência se fundamentavam na concórdia, pregnância e complementaridade que as obras manifestavam entre si e na atmosfera que propagavam em uníssono no espaço expositivo.

Adoptando implicitamente alguns dos princípios expostos por Judd – que alargava ainda o horizonte da intervenção artística à arquitectura e à produção de artefactos e objectos de uso corrente –, Martim Brion, através de uma série de operações combinadas de repetição e diferenciação de formas elementares, propôs-nos um itinerário platónico, minimalista, abstracto, que se desenvolve na fronteira subtil que separa o mundo material dos entes (mundo da doxa, da ilusão) do mundo das ideias puras e das formas que lhes correspondem; um e outro esclarecendo-se reciprocamente e peneirando o essencial no pântano da indiferenciação.

Amparado numa indefinível memória transcendental onde “aquilo que só pode ser sentido (o ser do sensível) sensibiliza a alma, torna-a ‘perplexa’, isto é, força-a a colocar um problema, como se o objecto do encontro, o signo, fosse portador de problema” (Gilles Deleuze, Diferença e Repetição), Martim Brion incorpora a aformidade essencial da Forma ideal, assume-a como um “problema” ao qual é necessário dar uma resposta, dotá-la de uma configuração material apreensível, ou como afirma o artista, “procuro a materialização de ideias, conceitos, sentimentos, problemas, argumentos, pelo artista para o artista e para o público.”

Metaforicamente falando, não é possível apreender a essência da forma sem esgravatar na fímbria da divindade, nesse tão necessário e constante (re)começo envolto no nevoeiro original, naquela obscuridade que envolve ao mesmo tempo mundo e alma, onde se enraíza a razão intrínseca da Obra, porque “onde estiver a origem do que é, aí também deve estar o seu fim, segundo o decreto do destino” (Anaximandro, Da Natureza).

Pontos de Intersecção culminava em quatro esculturas de chão pertencentes à série Column, datada de 2020. O formato mediano destas obras subverte o senso comum e abre uma brecha nos pressupostos correntes que imediatamente associamos à ideia de coluna, à imagem do pensamento que comumente lhe está associada – um pedestal, um suporte mais ou menos anódino sobre o qual se coloca uma obra escultórica merecedora da nossa admiração. Estas esculturas pintadas são desprovidas de monumentalidade e convocam o espectador para uma atitude performativa. São formas puras, elementares, pintadas com motivos geométricos radicalmente simples, sobre cujas faces o artista introduz, por vezes, recortes, objectos, alterações de perspectiva, cor, luz, reflexão e escala, provocando pequenos desvios que evidenciam a pesquisa de Martim Brion sobre a essência da forma e a concomitante emergência de simulacros que a toldam; sobre o mundo ideal das ideias e o mundo material da ilusão, em suma. Esta mesma ambivalência estava patente no itinerário anterior a este ápice expositivo, sobretudo na série fotográfica Repetitions, onde o artista seleccionou, no magma caótico do quotidiano, pormenores de situações ou objectos que quando são retirados do seu contexto natural, revelam aspectos formais essenciais – “Esquecida, é desta maneira que a coisa aparece em pessoa à memória que a apreende essencialmente. Ela não se dirige à memória sem se dirigir ao esquecimento na memória. O memorando é também o imemorial.” (Gilles Deleuze, idem).

 

O autor não escreve ao abrigo do novo Acordo Ortográfico.

José Sousa machado. Nasceu em Luanda, em 1956. Estudou em Lisboa, no Liceu Francês Charles Lepierre, no Colégio S. João de Brito, no Liceu Normal de Pedro Nunes, onde conclui o ensino secundário e no Instituto Superior Técnico. Em 1975 mudou a residência para o Rio de Janeiro, tendo-se formado em Economia pela Faculdade de Ciências Políticas e Económicas do Rio de Janeiro e cursou até ao terceiro ano do curso de Letras, na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Regressou a Lisboa em 1981, tendo sido jornalista, crítico de arte e coordenador cultural no Correio da Manhã, revista ABC, Semanário e colaborador na área da cultura no Jornal de Letras, Diário de Notícias, Diário popular, Diário de Lisboa, entre outros. Foi fundador e diretor das revistas Artes & Leilões, Arte Ibérica, Agenda Cultural de Lisboa, Aprender a Olhar. Responsável desde 2014 pelo projeto Livraria Sá da Costa.

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