O Idílio Habitual, de José Loureiro
Entre “o cuco e a estrela ténue”[1], mergulhamos nas palavras de José Loureiro. O cuco representa aqui o ser humano que não olha a meios para atingir os seus fins, e que por isso admoesta, maltrata o outro no seu caminho de aspiração. Em contraponto, a estrela c1327kb tem uma luz subtil, quase invisível. Por esse motivo, apenas se deixa desvelar por um olhar zeloso que perscruta as profundezas do céu.
O “idílio habitual” é o reflexo inesgotável dos brilhos estridentes que ocultam as estrelas ténues. Perante esta evidência, relembro as interrogações de Calvino sobre a visibilidade e o futuro da imaginação do indivíduo: “O poder de evocar imagens in absentia continuará a desenvolver-se numa humanidade cada vez mais inundada pelo dilúvio de imagens pré-fabricadas? (…) Se incluí a Visibilidade na minha lista de valores para salvar é para advertir do perigo que corremos de perder uma faculdade humana fundamental: o poder de focar visões de olhos fechados, de fazer brotar cores e formas a partir de um alinhamento de caracteres alfabéticos negros numa página branca, de pensar por imagens.”[2]
A visibilidade é o oposto da evidência da luz pois é um valor humano que se resgata no encontro com a estrela mais ténue, no lugar da penumbra e do subtil. Creio que é este “poder” inusitado de “evocar imagens in absentia” que reverbera na pintura de José Loureiro.
Remetendo o referente para o lugar das palavras, o artista dá corpo à pintura. Em vários matizes, o negro conserva a primazia das formas, o movimento que flui em permanente vibração. O gesto e a profundidade do negro contrastam com as formas coloridas e flutuantes que emergem nas telas.
Em algumas obras, em particular, nas pinturas Amor no Cascalho e Criatura, convocam-se os resquícios de corpos humanos, estruturas reconhecíveis implícitas que se fragmentam em círculos e linhas retas ou curvas contra um fundo branco.
As telas são um extenso plano que confere a especificidade clássica do métier da pintura a óleo, revelando-se velaturas que se aprofundam para além da superfície.
O movimento expande-se da pintura para o espaço expositivo, orientando as formas e as cores numa composição musical que conflui com o próprio corpo.
Retomando o lugar da penumbra, invoco uma passagem da Teoria das Cores de Goethe[3], na qual o escritor reflete acerca da retenção das cores na retina após a ausência de luz. Os fenómenos cromáticos seriam explicados como uma propriedade intrínseca do olho humano. Sabemos hoje que a persistência da visão envolve de forma indissociável o olho e o cérebro. É esta relação subjetiva que se aprofunda em nós através da pintura de José Loureiro, permitindo-nos desvelar as imagens “in absentia” que permeiam a imaginação humana.
O Idílio Habitual, de José Loureiro, na Cristina Guerra Contemporary Art.
Nota adicional: Devido à atual situação de contingência, a exposição irá prolongar-se para além do prazo inicialmente previsto de 13 de fevereiro de 2021. Informações adicionais brevemente disponíveis no website da galeria.
[1] Alusão ao texto de José Loureiro concebido em julho de 2020 para a press release da exposição O Idílio Habitual, disponível em: youtu.be/iUP4pRz-a_M.
[2] CALVINO, Italo, Seis Propostas para o Novo Milénio, tradução por José Colaço Barreiros, Edições Teorema, 2006 (1990 ed. original), pp. 111-112.
[3] GOETHE, Johann Wolfgang, Theory of Colours, tradução por Charles Lock Eastlake, MIT Press, Cambridge, Massachusetts, março de 1970 (1810 ed. original).