Face à “Vida Nua”
Emília Tavares oferece-nos, através da exposição Face à “Vida Nua”, patente no MNAC, obras de três artistas, desenvolvidas durante a primeira fase da pandemia do COVID-19. João Pina, Luciana Fina e Vasco Barata levantam-nos, por meio das suas diferentes expressões, complexas questões sobre as tensões globais manifestadas actualmente, de contágio, imunidade, medo e desigualdade.
João Pina fotografa realidades, e deixa-nos atónitos. Realiza-o com tal agudeza que só um extraordinário fotógrafo o poderá fazer. Nem as espessas lentes, e a complexidade mecânica que lhe é própria, inibe o artista de revelar imagens dotadas de tanta clarividência.
Debrucemo-nos, então, numa primeira instância, numa fotografia em particular: uma fotografia de uma jovem, artista visual, de 29 anos, chamada Amanda Dias. A crueza de (uma só) imagem resume a nossa inquietação. Trata-se de uma jovem que se queda à janela do seu apartamento, onde a vista, que lhe é oferecida, resume-se apenas a um frio e opaco muro de betão. Betão este que ocupa a maior parte da vista da janela, e onde a jovem só consegue vislumbrar uma “nesguinha” de sol e algumas janelas de outros prédios. Nem o horizonte consegue prescrutar.
Nesta imagem, de entre muitas das que o fotógrafo apresenta na exposição – e que compreendem uma série de fotografias, feitas em São Paulo, Brasil, num complexo habitacional chamado Copan, e desenhado por Óscar Niemeyer em 1966 – a jovem Amanda Dias, faz um esforço enorme para ver a vista da sua janela, além do pouco que o betão, à sua frente, lhe permite vislumbrar. Desta vez, o que resultou outrora num triunfo da modernidade, traduzido em bela arquitectura, apanha desprevenido o Homem, (e a própria natureza), imobilizando-o.
Esta jovem, encontra-se, no momento da fotografia, em isolamento auto-imposto, e decerto, se interroga sobre o futuro, futuro incerto que se impõe, e nos apanha a todos de surpresa. Sobre nós assolam medos, dúvidas, receios sobre se a vida voltará ao que eras antes. Medo da miséria, da fome e, por fim, da morte. As nossas balizas e certezas são, de súbito, abaladas, interrompidas. Que pensamentos atravessam o espírito desta jovem? Um projeto que se interrompe? Uma ideia que fica por concretizar? Uma identidade que se evapora, com todas as suas representações, e implicações? Pensamentos de pertença a um grupo? Todos os sonhos adiados, e pior ainda, esperanças e motivações hipotecadas?
E depois? Uma janela tapada por betão. Que perspetivas pode ter uma artista que tem como sua principal ferramenta os próprios olhos? A visão?
Em torno desta imagem outras se lhe seguem, cada personagem, convidada pelo fotógrafo, procura inventar a sua forma de lidar com a pandemia, e o isolamento. Sobre as suas escolhas paira uma vaga de incertezas. Agora mais próximas, mais iminentes, e que vieram perturbar o habitual sentido e linearidade da vida. A vida fica em suspenso. Sob o horizonte uma nuvem de fumo, obscura o futuro. Nada parece ter consistência, diz-nos José Gil, em o Tempo in domado. Mas a pandemia apenas veio reforçar o que já não estava bem. Precipitar o que já pairava sobre nós, cobrindo-nos de sombras, como um pássaro de mau auguro. O ambiente, por exemplo, agoniza, moribundo. Expele os últimos sopros de vida na terra. Haverá espaço para um retorno? Ou uma paragem, a tempo, de travar a destruição? José Gil, porém, deixa-nos uma restea de esperança, fala-nos de caos, e de como o caos pode ser traduzido em alimento necessário para a criação. Assim sendo, poderá a criação (artística) neste caso, fomentar a indignação dos povos face ao jugo do capitalismo trucidario? Poderá mudar os seus hábitos, os seus pensamentos, e conduzi-lo a um agir mais consentâneo com o ambiente e com as leis do planeta?
Luciana Fina, conduz-nos à sua obra por meio de uma singela melodia de Giovanni Battista Pergolesi, Questo é il piano. O objeto é um filme, que, num primeiro impacto, nos leva a uma impressionante paisagem de troncos, e que, num curto espaço de tempo nos parece um jogo abstrato, um exercicio lírico de linhas orgânicas, mas a um olhar mais atento, e demorado, nos entristece, porque nos apercebermos, afinal, de que se trata de um número infindável de árvores que foram abatidas, interrompidas assim, do seu sopro normal de vida, para satisfazer a especulação imobiliária, e a fugaz ambição dos homens. Homens que agem como se a natureza lhes pertencesse. Boaventura Sousa Santos, no seu livro mais recente, O futuro começa agora, da Pandemia à utopia, esclarece-nos bem sobre esse assunto: “A pandemia pôs-nos no limiar de um tempo que da maneira mais sucinta pode ser caracterizado assim: desde o século XVI até hoje vivemos uma época em que a natureza nos pertencia; a partir de agora, entramos numa época em que pertencemos à natureza”.
Esta pandemia não nos dá tempo para pensar como agir, lembra-nos que esse tempo já acabou. Esta pandemia pede para agir de súbito, sem demora. Põe a nu as discrepâncias manifestadas entre dois mundos, adensadas pelo capitalismo cego. Por um lado um mundo de oportunidades, já de si uma minoria, que subjuga e atormenta um outro, muito mais alargado, e que já vivia com toda a espécie de perturbações, pesadelos, ameaças: como guerras, fome, catástrofes, êxodos humanos forçados, extinção de espécies animais e desflorestação.
Por último, Vasco Barata, restitui-nos, pelas linhas aparentemente erráticas, mas livres, dos seus desenhos, o receio do comprometimento das liberdades. Preocupação tão fortemente manifestada por Giorgio Agamben, e que se traduz na advertência de que o isolamento, e consequente imobilização dos povos, poderá pôr em causa a democracia.
Até 23 de janeiro de 2021.