Entre Deux Eaux, de Adrien Missika
“And over the eons of time, the sea has grown ever more bitter with the salt of the continents.”
“Eventually man, too, found his way back to the sea.”
Rachel Carson, The Sea Around Us, 1951
Entre a escala e o peso das fronteiras marítimas no quotidiano político global, e a evidência de um elemento soberano que tudo varre nos seus múltiplos fluxos e correntes, Entre Deux Eaux, de Adrien Missika, é a manifestação de uma era geológica que chama por uma reconciliação política e científica entre o humano e o natural.
Em Atlas Ô, o emolduramento de oceanos e mares opõe-se à natural delimitação desses territórios e o consequente confinamento político-geográfico. E, no entanto, nenhum outro dispositivo poderia sublinhar com tanta clareza que também os mares são linhas de clivagem, tensão, mudança e alteridade abstratas. A moldura, com as suas precisas arestas retilíneas e ortogonais, é símbolo de uma separação, que, por seu lado, ajuda a conter e a reter o foco no fenómeno emoldurado. Pelo menos numa perspetiva micro.
Numa perspetiva macro, global, como a gaivota que esvoaça sobre a instalação, tem-se a noção de um globo espalmado e de uma constelação de massas de água que comunicam tangencialmente, longe da perceção científico-positivista proposta por Mercator. É o atlas sob o ponto de vista da água, que do ponto de vista histórico, cultural, político, congrega momentos e relações talvez com maior interesse que as fronteiras imaginárias terrestres, dos cumes, das florestas e das falhas geológicas. A instalação Atlas Ô é simultaneamente mapa e monumento, de perdas, conquistas e partilhas: dos tráficos de escravos e das primeiras viagens marítimas de longo curso; dos migrantes que afundaram as suas vidas em busca do exílio ou de uma vida melhor e das profícuas e férteis trocas comerciais que animaram a história dos países em torno, por exemplo, do Mediterrâneo; das lutas imperiais contra a pirataria às primeiras prospeções científicas nos mantos brancos polares.
A simplicidade da instalação é, contudo, errónea, na medida em que encerra uma materialização que dilata o conhecimento que dela extraímos num primeiro vislumbre. Como a pele azul-turquesa pálida que se descola para revelar, no recorte das letras, uma topografia marítima, algo mais pode ser dito sobre a plasticidade e a qualidade matéria da instalação.
As madeiras utilizadas para o emolduramento são expressão das paisagens naturais banhadas pelos mares e oceanos expostos, ao mesmo tempo que se reportam à histórica utilização de uma matéria desde sempre usada em câmbios comerciais. No limite, as espécies trabalhadas testemunham também a globalização desta matéria prima, o transvase de espécies de climas e territórios diferentes, as respetivas aclimatizações e propagações, ou o tráfico a que foram submetidas. São essas espécies, aliás, que ecoam na banda sonora desta viagem proposta por Missika em Arboretum.
The Sea of Carson é novamente uma visão política – mas também emotiva – sobre o mar e de como as políticas modernas diplomáticas – vazias no seu simbolismo geoestratégico – rompem com as memórias locais e culturais. Trata-se da mudança de nome da antiga Isla Ceralvo para Isla Jacques Cousteau, uma alteração que não contemplou de forma crítica as explorações petrolíferas feitas pelo cineasta e biólogo francês. O livro que o artista empunha na fotografia, em jeito de livro sagrado bramado à paisagem ondulante, intitula-se The Sea Around Us, de Rachel Carson, um documento que devolve o espírito científico e a poética a estas problemáticas e que deveria ser consultado repetidamente; usado até as páginas se desdobrarem em vincos; gasto pela luz dos tempos – tal como a cópia que Missika mostra nesta obra.
É este território azul profundo que serve de entorno a Triste Galet e Timeline, duas obras que expõem a viragem ontológica do Tempo, que passou a ser medido e ditado pelas regras e artifícios humanos e não pelos naturais – um tempo, um período geológico de naturezas fabricadas, de seixos de esferovite que se confundem com seixos minerais.
Entre Deux Eaux é uma viagem pelas periclitâncias do nosso relacionamento com os mares e os oceanos, e uma reflexão sobre como o Homem forçou o planeta às suas métricas, às suas escalas, desenhando-o e submetendo-o a um desenho desarreigado das ordens naturais e telúricas que formaram o Universo. Os mares e oceanos são fronteiras frequentemente disputadas e cobiçadas em termos políticos, territoriais e nacionais. Mas as espécies que habitam estes biomas imensos, que os ocupam nas suas leis mais elementares e primevas, são avessas a esses mapas fictícios e abstratos: navegam e percorrem as correntes e fluxos do globo como se nada, indiferentes às regras e tratadística diplomática, conscientes apenas da sua existência, tão complexa e societária com a dos outros seres.
Até 15 de janeiro de 2021, na Galeria Francisco Fino, com a curadoria de Asya Yaghmurian.