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COSMO/POLÍTICA #6: Biblioteca COSMOS – o início

Iniciada por Bento Jesus Caraça, em colaboração com Manuel Rodrigues de Oliveira, a Biblioteca COSMOS constituiu um marco no panorama editorial português, numa época em que o conhecimento não estava democratizado e a iliteracia e o analfabetismo abundavam em Portugal. Nesta perspetiva, editar uma centena de livros sobre cultura geral – da filosofia às ciências, das artes à geografia –, num país tolhido por uma ditadura atávica e castigadora, era um ato de coragem, ousadia e transgressão. Portáteis, apelativos, diretos e acessíveis, os muitos volumes da COSMOS prepararam as mentes para a dura realidade política, social, cultural e económica dos portugueses, na esperança de acalentar uma revolução que tardava em acontecer.

O sexto momento do ciclo expositivo COSMO/POLÍTICA debruça-se sobre esta biblioteca fundada em 1941, resgatando-a do esquecimento público e da sobrelotação concorrencial do mercado editorial que, entretanto, a sonegou às prateleiras das livrarias e das bibliotecas. Latente a este exercício arqueológico, a reanimação de “um propósito cultural emancipatório”, tal como as curadoras Sandra Vieira Jürgens e Paula Loura Batista sublinham. E entregar aos artistas esse trabalho da arqueologia é olhar para o espólio de forma crítica e plástica, tirando-o da sua existência cronológica e atribuindo-lhe uma nova forma, desta vez atemporal, multirreferencial ou contemporânea.

De facto, o exercício mais difícil e mais frutífero deste longo ciclo é essa complexa extração das peças dentro de uma lógica muito delimitada – como é a do neorrealismo – e injetar-lhe um agente viral que o obriga a rever-se, a criticar-se e, depois, a reinventar-se.

Ou seja, COSMO/POLÍTICA #6: Biblioteca COSMOS não deverá ser entendido como um fim, mas como um princípio de algo que ora foi espoletado – a chama cuja combustão incendiou a revisitação crítica de um  movimento literário e artístico assente nas realidades políticas, sociais e humanas modernas.

Uma ponte imediata pode aqui ser feita com a obra de Elisa Pône para esta exposição, que recorre ao fogo e à pirotecnia como técnicas pictóricas, capazes simultaneamente de provocar o espanto e o horror. Em Finir Brûler, baseada em obras concretas da Biblioteca COSMOS, Pône estende, no entanto, a sua análise para o campo do simbólico: a chama é símbolo de morte e de renascimento – a mesma força combustível que alimenta a mudança e a revolução.

Os livros são lugares finitos. Mas são também correntes de pensamento que se alimentam mutuamente. Um livro recorre a outro, que interpela outro, que referencia muitos outros. As leituras que os artistas fizeram destes livros, provavelmente, serão depois expandidas por outros que já não constam nesta Biblioteca. Nessa medida, esta exposição serve como uma atualização partilhada do conhecimento produzido após a sua linha editorial ter sido dada como terminada. Na cristalização de uma memória que se pode borrar e esquecer, os livros, apesar do seu aspeto estanque e encerrado, abrem portas para a plasticidade do conhecimento, do pensamento e da memória – um diálogo feito e refeito na suspensão do espaço e do tempo por muitas vozes e autores.

É sobre este curso do tempo, da sua circularidade e da interpretação que certas obras suscitam e que obrigam a ver e a rever, redobradamente, que Filipe Pinto desenvolve a série Regardless. A pequena instalação da ampulheta rolante reforça essa ideia e expõe o tempo mais como uma coisa anacrónica que diacrónica.

Francisco Pinheiro funda as suas peças no tema Migrações e Natureza da Biblioteca COSMOS. A articulação entre elementos vegetais e artificiais ou trabalhados expande a dicotomia do Natural e do Homem, ao mesmo tempo que estreita os polos desta que, na verdade, não passa de uma quimera dicotómica. Em Pinheiro, a arte aproxima dois campos que se têm enviesado desde o reconhecimento da nova era geológica do Antropoceno.

Depois a convulsão dos tempos – passados, modernos, atuais –, que tingem os momentos a negro. João Fonte Santa reflete sobre o tema Problemas do Nosso Tempo em Fütter Mein Ego (Alimenta o meu Ego), em que as imagens pintadas mostram ambientes de violência, tragédia e tensão, seguramente precipitadas pelas mudanças tecnológicas e a consequente e respetiva inadequação da política. Estes ambientes – talvez mais que imagens – são instantes captados de algo insidioso – premonitório, até –, que dialogam com as obras adjacentes.

A Arte, o pão e a água é um regresso ao pensamento sobre a produção do livro enquanto veículo de ideias e formador de consciências. Aqui, Marta Leite ensaia o que pode ser a desconstrução do livro através de uma constelação de excertos e desenhos que tornam a leitura fragmentada, por vezes inacessível – o espelho de uma cultura classista, repartida em múltiplos e irreconciliáveis pontos de vista.

Tomando como ponto de partida a secção Povos e Civilizações, Nuno Barroso propõe uma viagem sobre a história ocidental e o seu “legado”. As fotografias e os excertos apontam para caminhos dispersos no território político e histórico ocidental, desde o colonialismo, ao classicismo, da revolução industrial à ideia de Europa.

Finalmente as obras de Sofia Gonçalves, que enaltecem a construção conjunta da Biblioteca COSMOS. Gonçalves recorre à documentação e à zincogravura para homenagear os nomes ausentes desta grande construção do pensamento moderno português, servindo-se da mesma linguagem editorial impressa para a conceção da publicação Como Reclamar a Incompreensível Dificuldade de Comunicar com os Mortos.

Ao incidir sobre uma biblioteca, COSMO/POLÍTICA #6 é um ensaio sobre a produção do conhecimento, do livro e da literatura como fontes inesgotáveis para a arte e os artistas. COSMO/POLÍTICA #6 é esse índex conector e dialógico que junta nomes, autores, pensamentos, ideias e ideais, problemas e soluções, e que vibra no âmago de cada leitor ou visitante a curiosidade do saber. Nesta perspetiva, nunca poderia ser considerado um fim, mas o início de uma coisa por acontecer.

Ao longo de seis exposições, de 2017 a 2021, COSMO/POLÍTICA foi um dos mais curiosos projetos curatoriais e institucionais em Portugal, promovidos pelas curadoras Sandra Vieira Jürgens e Paula Loura Batista e o Museu do Neo-Realismo. Embora baseado na edição da Biblioteca COSMOS, a rápida associação à teoria da cosmopolítica de Isabelle Stenger e Bruno Latour acrescenta uma outra camada enciclopédica e universal – nunca universalista e sempre em construção – a este ciclo. A conquista de uma pluralidade, da construção política através do dissenso e da alteridade, do que é possível fazer-se num universo que já não contempla as espécies humanas, mas também as não humanas, e que, portanto, se complexificou ao ponto de se tornar mais um “pluriverso” do que um universo – são temas que foram sendo trabalhados com a plasticidade ora mais comprometida ora mais sugestiva da arte.

COSMO/POLÍTICA #6: Biblioteca COSMOS está patente no Museu do Neo-Realismo, Vila Franca de Xira, até 31 de janeiro de 2021.

José Rui Pardal Pina (n. 1988), mestre em arquitetura pelo I.S.T. em 2012. Em 2016 ingressou na Pós-graduação em Curadoria de Arte na FCSH-UNL e começou a colaborar na revista Umbigo. Curador do Diálogos (2018-), um projeto editorial que faz a ponte entre artistas e museus ou instituições culturais e científicas, não afetas à arte contemporânea.

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