Somos todos patos a querer ser cavalos, de Adriana Proganó
Se as questões de género na História da Arte estão na ordem do dia, não podemos considerar que é porque é politicamente correto, temos antes de olhar com visão histórica e entender que a História escrita (toda ela) tem sido contada pela mão dos homens. Já a História oral, essa, sempre foi contada pelas mulheres ao deitar as crianças, à volta da lareira ou da fogueira enquanto os homens estavam na guerra ou no trabalho. Mas a tradição oral está a perder-se e a escrita, ainda que seja cada vez mais digital, perdura no tempo.
A História da Arte não é exceção. A questão de género extravasa, aqui, a simples forma de contar a História, mas traz outras questões como sejam a capacidade de emancipação feminina para desenvolver uma atividade artística de forma autónoma, sem ser em parcerias com os maridos, pais, irmãos ou como assistentes de artistas masculinos, que só aconteceu a partir do início do século XX e mesmo aí só através de tradição familiar, pois só as filhas de pintores tinham acesso a uma educação artística. Para além disso, só em 1970 um conjunto de mulheres historiadoras de arte na Califórnia começou a estudar, pela primeira vez, a vida e a obra de pintoras italianas do Renascimento.
A pintura figurativa parece ter ganho um novo fôlego desde o final do século passado e Somos todos patos a querer ser cavalos vem desta linhagem figurativa para, com humor e alguma rebeldia, levantar questões sociais, entre elas a questão de género. Adriana Proganó é uma artista com bastante humor, é preciso evidenciá-lo, o que nestes tempos sérios que vivemos traz um novo olhar, essa tal rebeldia mencionada, ao trabalho artístico. Proganó é até bastante cáustica nas suas obras, que não têm nada de politicamente correto. A conotação sexual é explícita e serve para desconstruir mitos, como em Cicciolina pees where she wants, numa clara alusão à pornografia não como uma exploração da mulher, mas sim como uma possibilidade de emancipação: a mulher que participa nos filmes pornográficos e a mulher que vê filmes pornográficos.
Proganó do ponto de vista artístico insere-se na Bad Painting, cujo elemento mais conhecido é Jean-Michel Basquiat e com quem a artista partilha algumas características relativamente à figuração. No entanto, é uma certa falta de aprimoramento técnico característico deste movimento artístico, mas ao mesmo tipo um carácter exploratório no traço e uma certa falsa fragilidade no tratamento figurativo que a aproximam mais de Rose Wylie, por exemplo.
Esta fragilidade figurativa e utilização rude da técnica de desenho permitem-lhe ser mais cáustica e direta sem, contudo, causar um impacto tão violento. O mesmo acontece com o dispositivo da exposição. Todo o pavimento da galeria está forrado a alcatifa rosa-choque. Ao mesmo tempo que a textura e a cor da alcatifa nos transmitem uma sensação de conforto, o cor-de-rosa não é um rosa fofinho, é um tom forte que incomoda, direto que em conjunto com as luzes nos agride. O mesmo acontece com as obras. Os desenhos e as palavras parecem infantis, mas a temática não é, o que resulta num conjunto desarmante com linguagens aparentemente díspares, mas que servem esta ironia que Proganó utiliza como forma de nos confrontar.
Em Somos todos patos a querer ser cavalos, há uma primazia do trabalho da mão. A mão que desenha, mas também a mão que escreve. A letra manuscrita que é, hoje, cada vez mais rara, mas sabemos que aciona partes importantes nomeadamente a parte criativa do cérebro. A inscrição da palavra e do título na tela é uma constante, assim como a nudez assexuada. Esta nudez é uma exposição da personagem, um veículo da sua mensagem e não uma provocação como em I fell in love with a boy with 502 moles. Ou seja, a provocação é sempre o tema e não a nudez em si mesma.
Tudo em Adriana Proganó parece um jogo, uma brincadeira. Desde as posições por vezes insólitas em que estão as figuras, até aos títulos, tudo parece leve e infantil, mesmo quando levanta questões bem sérias. No fundo, Adriana Proganó tem uma criança dentro de si que levanta crua e objetivamente, mas sem dramas, questões densas e urgentes do mundo adulto contemporâneo.
Até 31 de janeiro de 2021, na Casa da Cerca – Centro de Arte Contemporânea, em Almada.