Resposta Aberta: Chto Delat
Resposta Aberta é uma série especial de entrevistas com artistas, curadores, escritores, compositores, mediadores e “fazedores de espaços” internacionais. Atendendo aos temas que rapidamente emergiram como consequência da pandemia de Covid-19, oferecemos, aqui, uma perspetiva diferenciada e honesta de compreensão. Semanalmente, várias serão as portas abertas à vida dos colaboradores e às suas experiências de prazer, produtividade, metafísica e mudanças de paradigmas. Idealmente estas conversas poderão servir de caixas postais e conduzir a uma maior empatia, unidade e cocriação. Resposta Aberta vai ao encontro da necessidade de tecer a autonomia de uma rede de comunicações consciente, em tempos de extrema perplexidade.
O coletivo Chto Delat [O que fazer?] foi fundado no início de 2003, em São Petersburgo, por um grupo de artistas, críticos, filósofos e escritores, com o objetivo de mesclar teoria política, arte e ativismo.
A atividade artística é feita através de vários meios – desde peças de vídeo e teatro, a programas de rádio e murais –, com projetos artísticos, seminários e campanhas públicas. As obras do coletivo caracterizam-se pelo uso do efeito de alienação, cenários surrealistas, tipicidade e análises sempre baseadas em casos associados a lutas sociais e políticas.
Em 2013, o Chto Delat inaugurou uma plataforma educativa – School of Engaged Art – em São Petersburgo, gerindo também um espaço conhecido como Casa da Cultura da Rosa. Desde o seu início, o coletivo tem vindo a publicar um jornal anglo-russo centrado na politização da situação cultural russa, em diálogo com o contexto internacional. As exposições incluem: When the roots start to move and get lost, State of Concept, Atenas (2020); Times, Lines, 1989s, Khoj International Artists’ Association, Nova Deli (2020); The Missing Planet. Visions and re-visions of Soviet Times, Centro per l’Arte Contemporanea Luigi Pecci em Prato, Itália, 2019; Proregress, 12ª Bienal de Xangai 2018, China; The Modern Art: 1960–2000. Restart, Tretyakov Gallery, Moscovo (2018); MUAC (Museo Universitario Arte Contemporáneo), México (mostra individual 2017); KOW BERLIN (mostra individual em 2017 e 2015), Bienal de São Paulo (2014); Art, Really Useful Knowledge, Museo Nacional Centro de Arte Reina Sofía, Madrid (2014); Art Turning Left: How Values Changed Making 1789–2013 – Tate Liverpool, Liverpool (2013); FORMER WEST: Documents, Constellations, Prospects, Haus der Kulturen der Welt, Berlim (2013); 10ª Bienal de Gwangju, Gwangju (2012); Chto Delat in Baden-Baden, Staatliche Kuntsthalle, Baden-Baden, 2011; Chto Delat Perestroika: Twenty Years After: 2011-1991, Kölnischer Kunstverein, Colónia, 2011; Ostalgia, New Museum, Nova Iorque, 2011; Study, Study and Act Again, Moderna Galerija, Ljubljana, 2011; e The Urgent Need to Struggle, Institute of Contemporary Art, Londres, 2010.
Na entrevista que se segue, Josseline Black conversa com Dmitry Vilensky, um dos membros que integra o coletivo Chto Delat.
Josseline Black – Numa reflexão sobre este recente período de isolamento forçado, como está a articular a sua resposta num discurso público? Qual é o seu papel nesta conversa mais ampla?
Dmitry Vilensky – A crise provocada pela COVID-19 na Rússia afetou todos os trabalhadores culturais de forma brutal, pois o governo não tomou quaisquer medidas para salvar e compensar a perda de atividades, resvalando para o colapso financeiro. Nós, enquanto coletivo artístico que opera internacionalmente, ficámos muito vulneráveis devido à interrupção dos projetos internacionais e a maioria dos nossos projetos foi cancelada ou adiada sem qualquer compensação. Felizmente, o financiamento para 2020, que recebemos anteriormente, ajudou-nos a reestruturar e a continuar o nosso trabalho com muitos novos desafios e restrições.
As medidas de confinamento na Rússia, entre abril e agosto de 2020, obrigaram-nos (a nós e a todos) a mudar amplamente os nossos programas e a transferi-los principalmente para a esfera online. Mas mantivemos o nosso contrato de arrendamento da Casa de Cultura da Rosa e transformámo-lo num aberto “espaço social e seguro” – permitindo que um número limitado de pessoas esteja nas suas instalações 24/7, o que lhes dá a possibilidade de se refugiarem das difíceis condições de vida em quarentena. O espaço foi utilizado como sala de leitura, estúdio para ensaios, concertos online e meditações.
O nosso principal curso educativo, “O programa de reaprendizagem pós-soviética”, ganhou um importante prémio russo na categoria “Inovação” para o melhor projeto educativo no domínio da arte na Rússia em 2020 (ver documentação completa e a exposição online aqui) e “muta” lentamente para a nova “A Escola da Mutação”, à qual agora damos continuidade.
Na quarentena tivemos de reformular as nossas atividades e intensificar a nossa presença online, que se tornou bastante visível se contabilizarmos o número de visitantes nas nossas palestras e seminários, tanto nos streams, como no Zoom. Organizámos uma mostra online, intitulada Ghost-Mutants, que, juntamente com uma publicação, se tornou o zénite do nosso curso de estudos pós-soviético. Ver aqui (o texto geral sobre o projeto e publicação em inglês e russo) e a exposição está disponível neste link (em russo).
Sentimos também que, durante o confinamento, apesar dos contactos diretos limitados, a nossa comunidade imediata conseguiu sobreviver e estabeleceu novas formas de apoio e cuidados mútuos. Os danos mais graves foram sentidos por todas as práticas performativas, dança contemporânea e diferentes workshops que exigem contacto e interações pessoais diretas, já que estes processos necessitam de um sério período de recuperação, que não é ainda possível.
É importante referir que, durante este período, concentrámo-nos na criação duma espécie de união de todos os artistas freelance, numa coligação local para estabelecer uma exigência de solidariedade por parte do município. Contudo, ainda não conseguimos cumprir esta tarefa, mas estamos num processo negocial: a construção de uma verdadeira estrutura.
JB – A sua prática artística mudou com o isolamento?
DV – Considero este um período de aprendizagem intensiva de temas que não estavam ainda no centro das nossas atenções. E foi entusiasmante, apesar de o “currículo” ser bastante sombrio. Fizemos algumas peças novas (instalação/filme/trabalho curatorial) que abordam todas estas questões. Penso que encontrámos uma nova forma de as abordar. A nossa pedagogia mudou mais no sentido do cuidado e da cura – não sei se é a forma mais interessante de ensinar arte, mas não se pode fazer o contrário agora. A nossa Escola da Mutação está a seguir nesta direção, percebendo que estamos a mudar juntamente com o mundo – precisamos de proteger certos valores e continuar a nossa missão.
JB – Como é que a sua capacidade prática para produzir trabalho foi afetada pela pandemia?
DV – Trabalhamos há muito tempo a questão das catástrofes. Os russos são famosos por um modo de pensar catastrófico e apocalíptico. Por isso, serei a última pessoa a queixar-se. E esta é exatamente a pandemia que todos merecemos. Esta é a nossa “con-temporânea”. Nós fazemos arte “con-temporânea”. Ou, pelo menos, tentamos fazê-la. Quando se faz arte que reage a questões sensíveis na sociedade – há raiva contra o capitalismo, ou contra o putinismo, ou contra o patriarcado; mas o que se pode fazer perante um vírus? Claro que encontramos algo passível de ser culpado – o colapso dos cuidados médicos, o pânico espalhado pelos meios de comunicação social, a desigualdade e a exploração crescente. Mas o que poderíamos fazer? Muito poucas coisas. É manter a fé e fazer arte.
Como muitos artistas, também estamos profundamente envolvidos na pedagogia; é uma parte muito importante da nossa atividade. O que podemos ensinar? Outra coisa: como podemos ensinar no Zoom? O ensino exige presença física, especialmente na arte, porque se baseou nesta convenção de imediatismo e interação. Para nós, teve muito que ver com a performance, a sensação do corpo, o tocar, o cozinhar juntos, partilhar a comida. O que podemos fazer?
JB – Qual é a sua abordagem à colaboração neste momento?
DV – Vejo que as nossas relações no interior do coletivo se intensificaram com a pandemia. O Zoom é algo perigoso – viciamo-nos e cada pequena pergunta exige reuniões pessoais – podemos agora fazer uma chamada em grupo a qualquer momento e conversar durante horas. Mas ficamos limitados a coisas reais e muitas subtilezas são perdidas. O Zoom mata a ambiguidade e a delicadeza das relações. Admito que fazer parte dum verdadeiro coletivo de amigos e camaradas nos salva realmente a vida nesta situação. Pelo menos, não estamos sozinhos.
JB – Como definiria o momento presente, metafisicamente/literalmente/simbolicamente?
DV – Costumamos especular na Escola da Mutação. Há uma grande ansiedade, pois perdemos o nosso corpo anterior e não encontrámos um novo. Ao mesmo tempo, não exagero no dramatismo, pois poderá haver um momento muito mais difícil. Daí esta ansiedade. As pessoas da minha idade lembram-se de tempos difíceis, à beira da guerra, mas havia uma expetativa de algo positivo por vir. Era preciso mobilização, força e sobreviver para vivermos um futuro brilhante ao lado dos camaradas.
JB – Vê potencial para um apoio renovado à produção cultural, apesar das macro e microeconomias estarem atualmente em rápida reestruturação?
DV – Na primavera, participei em muitos debates sobre financiamento público em grande escala, refletindo sobre a necessidade de grandes programas públicos (uma proposta de Hans Ulrich Obrichst e outros). Mas ainda não ouvi falar de nada assim. Parece que estamos perante uma nova onda de nacionalização da cultura – os alemães ajudam os alemães, os holandeses os artistas holandeses e assim por diante. Existem algumas bolsas da UE, mas a competição está a ficar alta por cada vez menos dinheiro. Os museus estão em ruínas, todas as estruturas internacionais também (como as bienais). Dificilmente podemos especular sobre uma recuperação rápida. A reestruturação acontecerá, mas dificilmente será em prol duma grande comunidade de trabalhadores culturais. Houve também especulações e exigências sérias em relação ao RBI, o que é uma necessidade, mas gostaria de ver um financiamento sério de obras públicas para os artistas, em benefício da sociedade.
JB – E.M. Cioran escreve: “nas grandes perplexidades, devemos tentar viver como a história foi feita e reagir como um monstro repleto de serenidade”. Como responde a esta proposta?
DV – Adoraria ser esse monstro! Para chegar a essa fase de sabedoria, é preciso enfrentar o fim do mundo todos os dias. E estar preparado para tal.
JB – Qual a sua posição sobre a relação entre catástrofe e solidariedade?
DV – A última esperança é a coletividade. Temos de confiar no nosso círculo imediato, na família, nos camaradas, na comunidade. Nesta pandemia, investimos mais energia e empatia nas coisas locais. Escrevi um singelo artigo “do nomadismo às raízes”, antes da pandemia. Crescemos como nómadas, foi algo superpositivo, foi revolucionário e depois algo começou a acontecer. É claro que temos de manter a visão planetária e, para mim, como internacionalista, é importante. Mas ao mesmo tempo é preciso estar aqui, não em todo o lado. Esta mudança de foco para o local pode ser importante para a sustentabilidade económica. O capitalismo não para pois a comunicação das economias continua, mas vejo que as pessoas se tornam mais conscientes do local.
JB – Qual é agora a sua utopia?
DV – A utopia não é o fim. A utopia é como lidamos com uma situação desafiante. A utopia pertence ao sonho do progresso. É algo que pode ser fantasia, mas tem uma base real. Thomas Moore. O comunismo. Vivemos sempre nesses espaços da Utopia, mas agora pensamos cada vez mais sobre como parar o progresso sem rejeitar a utopia.
Vamos abolir o capitalismo. Vamos estabelecer rendimentos básicos; que todos tenham a possibilidade de sobreviver com ou sem trabalho. Isto é possível de imaginar, mas é uma espécie de continuação de uma realidade para uma realidade melhorada. A nossa Utopia foi uma certa imaginação da sociedade pós-capitalista. Uma sociedade não baseada na troca monetária, no lucro, na alienação. Era esse a utopia em que acreditamos. Será que ainda está entre nós? Em certa medida, sim. Mas enfrentamos agora muitas vezes cenários mais sombrios, onde paira o término absoluto da maior parte da vida, ou da transferência imediata para muitas formas imprevisíveis de vida não-humana. “Somos compostagem, não pós-humanos” (Donna Haraway). Isto soa como algo intelectualmente provocador e poético, mas o sentido literal desta especulação é mais relevante, pois eu e outros não lhe aplicaríamos o termo utopia em qualquer sentido.