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Ponto Sem Retorno

No princípio era o verbo[1], o sentido telúrico que se desdobra nas memórias do corpo: o cheiro do pão, da fermentação natural, do cereal que alimenta a paisagem e da paisagem que alimenta o pão. Um nasce do outro e a sua reciprocidade expressa-se na simbiose das trocas mútuas entre a terra e o homem[2].

Na era do simulacro, o vínculo persiste no lugar, no ser humano que ao plantar e ceifar, ao colocar a semente e cuidar, se torna também ele arkhē[3], parte integrante do princípio ativo que anima o ciclo matéria. Na escultura, a consciencialização da arkhē humana constitui-se escolha que, por sua vez, se transmuta em gesto. Talvez por isso, o artista, ao humedecer a terra com as mãos, ao colher os cereais que constituem a massa lêveda, ao cozer e amassar o pão, introduz no seu processo uma sucessão de gestos que nos remetem para o lugar.

Em 1993[4], tinha eu dez anos, entrei numa sala de exposição onde se espraiava um grande pão. À altura do meu nariz, o pão cozido alimentava-me o palato imaginário de uma paisagem alentejana. As protuberâncias da massa e as paletas de ocres estendiam-se ao longo de vários metros. Do cerne do pão nascia uma árvore, um ramo colhido pelo artista que se metamorfoseava em escalas infinitas no meu imaginário de infância. Em torno desta escultura, havia sete massas em bronze, sete pães com os gitos[5] visíveis que, tal como a árvore do pão central, nasciam do cerne da massa fundida.

Nesta obra, a força do fogo era a premissa prometeica que nos dizia que o pão e o bronze persistem no humano através da técnica. Contudo, o deslumbramento técnico não se impõe na obra do artista. Em Jorge Camões, as esculturas entrecruzam-se anacronicamente, e agora, tal como em 1993, há um posicionamento ético perante a relação entre o ser humano e a natureza.

A exposição Ponto sem Retorno (10 dezembro 2020 – 03 janeiro 2021, Sala Azul do Museu Nacional de História Natural e da Ciência, curadoria Sofia Marçal) remete-nos para o Antropoceno, o período mais recente da história da Terra, o qual, tal como o nome indicia, se refere aos efeitos da atividade humana na biodiversidade, no clima, nos cursos de água, ou ainda em estruturas geológicas do planeta. Contudo, as esculturas de Camões, ao invés de invocarem uma leitura irrevogável do mundo, conduzem-nos, por oposição, para o sentido telúrico com o qual iniciámos esta reflexão. Da relação com o lugar, nasce o indício de abrigo: uma casa de madeira, uma embarcação, um ninho, uma rede permeável que protege e desvela. O indício é onírico, e tal como a criança em mim que via a árvore a crescer e a metamorfosear-se no cerne da paisagem, também os meus olhos adultos encontram, na obra de Camões, um coabitar ainda possível entre o ser humano e a natureza.

 

[1] Alusão ao pensamento cósmico presente no primeiro capítulo do Evangelho de João sobre a narrativa da criação do mundo

[2] Referência ao cante Alentejo, Alentejo – Sobre a simbiose das trocas mútuas entre a terra e o homem – Grupo Coral ‘Os ceifeiros de Cuba’, Constituição 1933, Cuba, Concelho de Cuba, Registo 2007;

[3] Arkhē – princípio ativo pré-socrático, aquilo do qual os seres provêm e ao qual regressam, e que compõe infinitamente todas as matérias. Para aprofundamento do tema, propõe-se a leitura de: BRUN, Jean, Os Pré-Socráticos, tradução do francês para português por Armindo Rodrigues, edições 70, Lisboa, 2012, (1969 ed. original);

[4] Exposição individual de Jorge Camões, Sete Caixas e uma Mesa, 1993, Galeria Novo Século;

[5] Gito – tubo que conduz o metal fundido para o interior do molde.

Margarida Alves (Lisboa, 1983). Artista, doutoranda em Belas Artes (FBAUL). Investigadora bolseira pela Universidade de Lisboa. Licenciada em Escultura (FBAUL, 2012), mestre em Arte e Ciência do Vidro (FCTUNL & FBAUL, 2015), licenciada em Engenharia Civil (FCTUNL, 2005). É artista residente no colectivo Atelier Concorde. Colabora com artistas nacionais e estrangeiros. A sua obra tem um carácter interdisciplinar e incide sobre temas associados à origem, alteridade, construções históricas, científicas e filosóficas da realidade.

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