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Confissões ou Uma Autobiografia Sem Factos, de Gustavo Antunes

Gustavo Antunes é ator, performer, pedagogo e investigador carioca. Desde 2014, explora as suas “inquietudes” nas artes performativas através das técnicas desenvolvidas por Butô, Jerzy Grotowski e Zygmunt Molik. Cria e expressa-se através do corpo “trabalhando sobre a memória e o imaginário”, procurando viver uma “realidade mais profunda”. No passado dia 20 de novembro, estreou na Lua Cheia – Casa do Coreto Confissões ou Uma Autobiografia Sem Factos, um monólogo que denomina “performance teatral”.

Assim que entramos na sala de espetáculo, apercebemo-nos de que a ação já começou. O espaço cénico está energizado e em pleno silêncio. O silêncio é quebrado pelo chiar do balanço da cadeira que Gustavo baloiça, um movimento denso e demorado que vai dando tensão à cena. O ator está de olhos postos no vazio, profundamente concentrado. Começa a falar: “Nestas impressões sem nexo, nem desejo de nexo, narro indiferentemente a minha autobiografia sem factos, a minha história sem vida. São as minhas Confissões e, se nelas nada digo, é que nada tenho que dizer”. À medida que fala, subtilmente verte a água de um jarro em direção ao copo que está em cima de uma mesa. O copo enche-se, mas a água continua a ser despejada, molhando a mesa e o chão. A ação está povoada de suspense, suscitando a curiosidade do espectador. Ao longo da peça, a energia do espaço cénico é bastante dramática, a perceção do espectador vai oscilando entre o que é real e o que é ficção.

A dramaturgia desta peça parte de fragmentos do Livro do Desassossego, de Bernardo Soares. Gustavo Antunes desenha a sua biografia sem factos a partir das interrogações e das confissões do heterónimo de Fernando Pessoa, transporta-as para o trabalho de pesquisa do que é (ou de quem é) o ator. As biografias tocam-se, aproximam-se, distanciam-se e confundem-se ao longo da peça. Descreve este processo utilizando o verbo dançar, dizendo que “dança a vida”, a sua e “milhares de outras encarnadas”. É bastante curioso que no vocabulário deste processo de pesquisa do ator surja o verbo dançar. A utilização do vocabulário da dança no teatro e vice-versa não é novidade, mas é hoje fundamental nas artes cénicas, uma vez que as contaminações entre o teatro e a dança são constantes. A performance pode ser vista como a mescla destes dois mundos: a dança e o teatro. O comum partilhado nesta relação é o corpo. Apesar das diferenças estéticas e nos modos de fazer, a reflexão sobre o corpo habita a mesma esfera sensorial e de pensamento. Gustavo Antunes refere-se como “ator-performer”, espelhando uma vez mais o trânsito constante das artes performativas. Para o ator, o corpo performativo é um lugar dialético que se joga entre a imanência e a transcendência. Em Confissões ou Uma Autobiografia Sem Factos, “oferece o seu corpo e o seu espírito na tentativa de comunhão, de transcender a solidão e de revelar o ser humano e suas incongruências, suas contradições”. No seu entendimento, o ator é como um “espelho no qual outro ser humano (o espectador) se reconhece”. Esclarece dizendo que não se trata de procurar uma identificação com “a dor ou alegria encenada”, mas sim de “fazer um estudo de si próprio no contacto com aquele ser humano (o ator) que está diante de si”. Trata-se de um exercício de desconstrução que divide o eu poético em dois: o que faz e o que observa. Tal como diz o personagem a certo momento: “Ver-me liberta-me de mim”. O ator, ao ser ator, está simultaneamente a observar e a viver a vida – a consciência constante entre o fora e o dentro. Ao expor as suas “sombras” e o “desconhecido” de si mesmo, Gustavo procura abrir “a possibilidade ao espectador de também realizar um confronto consigo mesmo”.

Em Confissões ou Uma Autobiografia Sem Factos, o gesto e o movimento seguem um conjunto de ações precisas e bem desenhadas. A coreografia auxilia o ator a estar presente no presente. Através de ações físicas (expressão criada por Stanislavski e utilizada no teatro físico de Grotowski), o ator procura expressar (ou materializar) o estado corporal e a presença física de Bernardo Soares, atravessando o seu próprio imaginário, ou seja, a referência dos estados de alma da personagem vem da memória e das histórias da vida do ator. Uma vez que se trata de um monólogo, o ritmo da cena não sofre grandes mudanças. A cadência é lenta e densa, contudo, há momentos de rutura. Nestes momentos, a velocidade, o olhar, a densidade e o equilíbrio do corpo mudam, estimulando a atenção do público e fornecendo imagens para a criação de significado. Algumas das questões que Confissões ou Uma Autobiografia Sem Factos levanta são a dualidade dos nossos sentimentos e a inquietude permanente do ser. No final da peça, ouve-se o personagem a confidenciar: “Escrevo isto sob a opressão de um tédio que parece não caber em mim ou precisar de mais que da minha alma para ter onde estar (…) Mas ergo a cabeça para o céu azul alheio, exponho a face ao vento inconscientemente fresco, baixo as pálpebras depois de ter visto, esqueço a face depois de ter sentido. Não fico melhor, mas fico diferente. Ver-me liberta-me de mim. Quase sorrio, não porque me compreenda, mas porque, tendo-me tornado outro, me deixei de poder compreender. No alto do céu, como um nada visível, uma nuvem pequeníssima é um esquecimento branco do universo inteiro”.

Rodrigo Fonseca (1995, Sintra). Estudou na António Arroio, é licenciado em História da Arte e mestre em Artes Cénicas pela FCSH/UNL. Foi cofundador da editora CusCus Discus e do festival Dia Aberto às Artes. Além da Revista Umbigo, faz crítica musical na plataforma Rimas e Batidas. É técnico de som especializado em concertos e espectáculos e artista residente da associação cultural DARC.

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