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Como (des)conectar uma feira de arte (em 2020): Entrevista a Ilaria Bonacossa, diretora da Artissima

Desde a sua criação em 1994, a Artissima assumiu uma identidade experimental e alargou o conceito daquilo que uma feira de arte contemporânea pode ser. Este ano, quando mais do que nunca precisamos de novas fórmulas, a Artissima acontece numa versão “unplugged”, que combina projetos virtuais com exposições físicas.

Na versão digital, são lançados dois projetos online até 9 de dezembro: Artissima XYZ – uma plataforma multimédia, e um catálogo online que permite explorar galerias, artistas e obras. Na versão física, recentemente adiada para o final de dezembro, a feira apresenta três projetos expositivos com trabalhos de diversas galerias nos museus da Fondazione Torino Musei, sob o título Frenetic Standstill.

A Umbigo falou com Ilaria Bonacossa, diretora da Artissima desde 2017, sobre a feira, as suas intenções e como o formato deste ano é, naturalmente, um reflexo dos tempos que vivemos.

 

Carolina Trigueiros – Numa entrevista recente, afirmou: “quando planeamos uma feira de arte em 2020, temos de ser ágeis”. Este ano, teve de repensar o formato da Artissima várias vezes desde a primeira vaga pandémica, e está prestes a adaptar-se à segunda, já que que a situação europeia se agravou rapidamente, com novas restrições. Quão difícil tem sido planear a Artissima durante este período, uma feira conhecida pelo seu experimentalismo? Quais as esperanças e ambições para esta edição?

Ilaria Bonacossa – A feira tem sido sempre um importante evento de quatro dias, cujo ponto forte é a concentração espacial e temporal. Nestes meses, temos trabalhado para conservar e reinventar este trunfo, tentando imaginar modelos de sustentabilidade económica e de segurança que possam satisfazer as necessidades das galerias, clientes e parceiros. Tem sido bastante difícil – por vezes, senti-me um hamster numa roda. Mas eu e a minha equipa trabalhámos incansavelmente, inventando novos projetos com destreza, criatividade e determinação, desmantelando e remontando a feira em função das mudanças. Nesta incerteza global, e para evitar desperdiçar estes hercúleos esforços, concebemos novas exposições físicas e online para a apresentação de arte em Torino. Uma versão “desconectada” da Artissima que apoia o sistema artístico e os seus intervenientes de forma inovadora, narrando a arte contemporânea através do trabalho de galerias italianas e internacionais, que sempre apoiaram a feira com lealdade e entusiasmo.

CT – A plataforma digital deste ano, Artissima XYZ, está dividida em três secções curatoriais, que incluem vídeos e podcasts de galerias e artistas. Mais do que uma simples secção de feira, descreveu-a como uma “revista de arte contemporânea interativa”. Como é que esta versão online da Artissima está a funcionar até agora? Podemos tirar conclusões? E, haverá aqui a possibilidade para novas, outras linguagens?

IB – A Artissima XYZ é uma experiência digital imersiva, que vai além da apresentação das salas. Esta nova plataforma disponibiliza novos conteúdos experimentais que permitem conhecer o trabalho de todas as principais figuras envolvidas: galerias, artistas, curadores. Cada equipa curatorial escolheu dez projetos para cada secção, com dez artistas cada, apresentados pelas suas galerias e seguindo uma orientação temática precisa. Esta abordagem multimédia e utilização simples abriram caminho a um público mais vasto, não só composto por colecionadores e profissionais do sector, mas também um público mais genérico feito de curiosos, jovens visitantes, que assim se familiarizam com a arte. Neste sentido, os encontros online com curadores e críticos, organizados semanalmente para acompanhar a descoberta de artistas e obras, têm sido bastantes populares. Com estes projetos, conseguimos transmitir a mensagem de que a arte não está esganada, e consegue ultrapassar barreiras físicas, continuar a contar as suas histórias e oferecer novos conteúdos graças a iniciativas digitais.

CT – Estamos a falar da importância da presença online e a sua preponderância nos últimos tempos. Lembrei-me que, durante o seu primeiro ano como diretora da Artissima, em 2017, lançou a plataforma digital artissima.art – um catálogo online que permitia explorar a feira num ambiente virtual. Como encara as implicações da plataforma online no mundo da arte e a sua evolução nos últimos anos? E a forma como a internet afetou o mercado artístico? Em última instância, será esta relação tão necessária e desejada com o digital, também receada pelo mercado?

IB – As experiências físicas e digitais continuarão a interagir. Por um lado, apesar dos grandes investimentos digitais, acredito que a relação direta, “física” com uma obra de arte, o diálogo com o artista e o colecionador, o contacto com o público, têm um valor insubstituível. Por outro, a presença digital tem sido uma clara revolução, e não há volta a dar. Os hábitos mudaram e, para qualquer galeria ou museu, é agora indispensável ter um website e redes sociais. É uma forma de ganhar visibilidade e tem a mesma função de agregação social que anteriormente era conseguida em jantares e inaugurações.

O crescimento do mercado digital tem sido constante nos últimos cinco anos e, neste estranho 2020, está associado a uma tendência consolidada de investimento no digital, por parte dos players do mundo artístico e das novas gerações de colecionadores internacionais que utilizam a web para se informarem e contactarem galerias. A aceleração desta parte do mercado durante o presente ano está ligada à impossibilidade de viajar, o que levou todos os interessados a utilizar o digital como meio de descoberta e interação entre galerias e colecionadores, amantes de arte e museus.

Desde que assumi o cargo de diretora da Artissima, os canais digitais têm sido um ponto fulcral no nosso trabalho. Termos evoluído nessa direção como resposta ao confinamento foi natural. Juntamente com a equipa curatorial da feira de 2020, criámos projetos como Fondamenta e /ge·ne·a·lo·gì·a/, com novas oportunidades de visibilidade e vendas, sem custos. Também na área das iniciativas digitais, com o apoio da Fondazione Compagnia di San Paolo, a Artissima apresenta este ano, para além do habitual catálogo online Artissima, a plataforma original Artissima XYZ, e vários eventos online com curadores, visitas guiadas e visitas virtuais às exposições.

CT – Voltando ao programa Artissima Unplugged, comissariou uma exposição intitulada Frenetic Standstill, que irá abrir em três museus da cidade: Galleria Civica d’Arte Moderna e Contemporanea, Palazzo Madama e Museo d’Arte Orientale, e reúne obras de muitas das galerias escolhidas para a feira este ano. Pode falar-nos sobre a linha curatorial e o título? Parece algo bastante adequado, tendo em conta a enorme oferta online nos últimos tempos e simultânea turbulência político-social, enquanto estamos fisicamente tão limitados. Como é que esta dualidade converge e colide? E, em última análise, como é que estas ideias são sustentadas ou desafiadas pelas obras em exposição?

IBFrenetic Standstill é um termo relativo à sociologia e à política, indicando uma situação de aparente atividade, mas que não produz quaisquer resultados. O tema despoleta os debates mais recentes e é uma representação oportuna do que temos vivido nos últimos meses, e que ainda hoje se sente nos mais variados tipos de confinamento. Através das obras de arte, Frenetic Standstill suscita reflexões sobre o conceito de aceleração em oposição à inércia, e sobre a necessidade cada vez mais urgente de alterar os nossos paradigmas e procurar possíveis respostas para a crise. A seleção não foi simples, pois considerámos múltiplas variáveis, desde a origem geográfica das obras até às suas dimensões, além dos temas sugeridos por cada peça. A apresentação materializou-se numa tentativa de realçar os aspetos particulares de cada caminho de investigação, num diálogo por vezes dissonante, mas cheio de vitalidade e força visual.

Frenetic Standstill foi instalada e está pronta para receber público, mas nesta fase inicial está apenas visível digitalmente: é uma ode à resistência e à fé, uma tentativa de narrar a emergência deste tempo através das obras de arte escolhidas.

CT – À luz das recentes manifestações por todo o mundo contra as alterações climáticas, continua-se a pedir medidas mais fortes e concretas. Mas não só: existem também enormes problemas relacionados com género, raça e classe, e as instituições estão a ser chamadas a enfrentá-los. Qual deveria ser, na sua opinião, a posição de uma feira? Pode dar-nos alguns exemplos sobre como abordar questões tão desafiantes?

IB – Acho que as feiras devem compreender o complexo ambiente social e político em que operam, considerando seriamente as questões ligadas às suas próprias ações éticas e sustentabilidade. De igual forma, a escolha das galerias selecionadas através dos artistas que cada uma apresenta deve destacar a forma como os artistas de diferentes países abordam e refletem estas questões, primordiais para o futuro da nossa sociedade. As feiras podem ser um notável meio de inclusão e transparência, ao permitirem que novas galerias de diferentes países entrem na corrente dominante.

CT – Por último, como imagina uma feira, como a Artissima, num mundo pós-COVID? Quais as expectativas e maiores preocupações?

IB – Espero que esta crise nos ajude novamente a colocar o foco na dimensão humana do mundo artístico, com as relações no centro, e não apenas na necessidade de vender mais arte a preços mais elevados. Para além das muitas dificuldades, este período tem fomentado novas formas de ver a arte e novos métodos de colaboração. Esta edição da Artissima permitiu-nos intensificar e reforçar as sinergias com várias organizações e instituições do território. O período de crise encorajou-nos também a estabelecer um diálogo mais intenso com as galerias e a pensar conjuntamente sobre o futuro do mundo da arte, conduzindo a uma maior maturidade no modelo de feira de arte.

Hoje, trabalhamos com a consciência de que esta situação poderá continuar nos próximos meses. Por um lado, estamos a caminhar para um momento em que toda a sustentabilidade do sistema da arte está a ser posta em causa. As instituições e os museus precisam de ajuda para pôr em jogo a energia financeira que mantém todo o sistema vivo. Há também a necessidade de compreender, através do trabalho dos artistas, o que pensam e como imaginam o mundo, a luz ao fundo do túnel. A arte contemporânea deu sempre um salto em frente na interpretação do presente e do futuro, dada a sua capacidade de imaginar mundos mais ou menos distópicos. O que vivemos hoje é tão inesperado que a arte pode sem dúvida representar uma forma de tentar compreendê-lo e abrir cenários para uma mudança profunda e ponderada. Nos momentos de crise podem surgir mudanças positivas e nós continuaremos a trabalhar nesse sentido.

 

NA – A entrevista foi realizada originalmente em inglês.

Carolina Trigueiros vive e trabalha em Lisboa. Licenciada em Comunicação Cultural (2013) entre Lisboa e Barcelona e com uma pós-graduação em Curadoria de Arte na Universidade Nova de Lisboa, tem vindo a trabalhar na área da curadoria, produção e escrita.

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