All the light that’s ours to see, de Judith Barry
“The cinema was invented, and new spaces appeared, casting shadows with light. Lustrous, celluloid ribbons unspooling, burning brightly, igniting us.”
Esta é uma das frases que podemos ouvir na Lumiar Cité, o espaço expositivo da Associação Mamaus que, mais uma vez, se transfigurou para receber Judith Barry e a estreia mundial de All the lights that’s ours to see com a curadoria apaixonada e apaixonante de Jürgen Bock.
Existe uma história que serve de base narrativa a esta instalação: Mondo Kim’s era uma cadeia de videoclubes em Nova Iorque que, com o advento do digital e do streaming, foi à falência. O seu proprietário é um amante da Sétima Arte e, não querendo desfazer-se dos cerca de 55 mil filmes, encontrou na Sicília uma povoação que disponibilizou uma biblioteca de um antigo mosteiro do século XXVII para receber a sua coleção. Na entrada da galeria podemos ver um pequeno vídeo documental que explica a história de forma breve. Sobre esta base documental, Barry desenrola uma narrativa ficcional num trabalho de montagem minucioso e muito bem conseguido.
All the light that’s ours to see é uma instalação vídeo projetada em dois écrans dispostos de forma a criar um ponto de fuga comum. Este ponto de fuga é acentuado pela disposição dos bancos onde o visitante pode assistir à projeção. Também o pode fazer de pé em qualquer zona do piso superior do espaço da Lumiar Cité, mas perde essa experiência imersiva que é conseguida através da utilização da visão periférica e da escolha que tem de fazer acerca da tela para onde olha quando está de frente para esse ponto de fuga.
Ao mesmo tempo que vemos imagens da coleção de Kim e do edifício (há uma relação muito particular de Judith com a arquitetura que está presente em todo o seu corpo de obra) com as suas prateleiras cheias de DVDs e cassetes de vídeo, imagens sobrepostas mostram-nos excertos de filmes de realizadores como Fassbinder, Cassavetes, Fritz Lang, Tarkovsky entre outros e até de imagens feitas com os famosos panoramas do início da imagem em movimento. Por vezes, também vemos paisagens que nos libertam dos espaços interiores e nos remetem para um exterior mais vasto, proporcionando-nos uma respiração.
Os filmes têm diferentes suportes, o que é assumido. Mas por vezes Barry introduz de forma propositada grão e ruídos visuais, criando um diferencial de textura visual e sonora. Também o trabalho de montagem e mistura de som é essencial para a fruição da obra e é no seu conjunto que ela nasce. O som a espaços diegético, a espaços extradiegético guia-nos e abandona-nos como se nos levasse pela mão numa dança. A relação entre os dois écrans é muito particular, alternando ritmos e escalas, dividindo por vezes um dos écrans numa cacofonia visual que é também sonora, mas nunca desorganizada. O ponto de fuga criado pelos limites dos dois écrans provoca no observador uma sensação disfórica de movimento. Há momentos em que as imagens em ambas as telas ficam síncronas, para logo se distanciarem, como se fosse uma composição musical. Em rigor é essa a abordagem da instalação: uma composição visual e sonora para ser experienciada como um todo.
Toda a Lumiar Cité contribui para este ambiente quase operático da instalação. As janelas imensas da galeria foram tapadas (já é frequente serem intervencionadas) criando um ambiente mais confortável para esta emersão fruidora. O projeto da exposição é de Ken Saylor que transformou até a mesa da receção dando-lhe um padrão igual ao do pavimento (calçada portuguesa) que é duplicado no piso superior numa mesa onde podemos ver algumas publicações históricas sobre cinema.
Judith manipula-nos através dos afetos, das memórias visuais e sonoras. Por vezes introduz frames disruptores nas imagens, como se os fantasmas de uns filmes se tivessem imiscuído nos outros e também eles andassem pelas prateleiras do Mondo Kim’s perdidos entre mundos, o digital e o analógico. Por vezes são apenas frames que quase parecem erros de revelação de película, outras são figuras fantasmagóricas que povoam a obra, lembrando a sensação que teriam os espectadores no início do cinema: “Mas a principal novidade preceptiva e intelectual trazida pelo cinema foi a generalização da montagem, e o facto de poder encadear imagens totalmente díspares. (…) nada havia preparado essa experiência de uma imagem que de repente substituía outra, sem aviso, sem transição, de cada vez à custa de um pequeno trauma visual.”[1]
Mas Judith Barry não nos causa traumas visuais nem sonoros, antes guia-nos numa história, que também é nossa, de amor aos filmes, independentemente do formato, do suporte ou até do local onde são visionados. Ao mesmo tempo que homenageia o cinema e a sua memória, questiona-nos sobre as novas formas de ver cinema, a experiência coletiva em oposição à experiência individual, mais íntima dirão alguns, menos rica emocionalmente dirão outros. Ao cinema que foi a grande experiência artística coletiva de outrora, resta-lhe a pequena experiência doméstica do streaming.
[1] Aumont, Jacques, A Imagem, Lisboa: Edições Texto & Grafia, 2011, 3ª Edição, p. 175.