Peça do Coração: EXCALIBUR
Peça do Coração: EXCALIBUR vem no seguimento da peça Peça do Coração: FOR HIM (2012). PEÇA DO CORAÇÃO é um projeto que a bailarina, coreógrafa, e performer Mariana Tengner Barros pretende desenvolver para sempre. O objetivo é recriar ciclicamente o conceito inicial do projeto nascido em 2008. O conceito passa por explorar as dinâmicas de solo e coro, as múltiplas relações entre a singularidade e a pluralidade, assim como a polissemia da palavra “coração”, desde a sua encenação iconográfica para a representação da paixão e do amor, à sua função vital de “bomba do corpo”. Peça do Coração: EXCALIBUR é dirigida por Mariana Tengner Barros, e produzida em colaboração com o artista gráfico Mark Angelo e a equipa d’A Bela Associação.
A palavra EXCALIBUR já tinha sido utilizada num workshop de Mariana Tengner Barros. Em entrevista para o Coffepaste, explica o que esta espada representa para si: “Excalibur é a espada do rei Artur, a espada que está cravada numa pedra de onde ninguém a consegue tirar, que é dada pela Senhora do Lago. Há toda uma parte esotérica e metafórica que me interessa e que tem a ver com uma esperança, que pode trazer uma mudança, uma nova perspetiva sobre o mundo, e uma nova maneira de o habitar… No fundo é uma metáfora, e tem que ver também com uma vontade de trazer à memória das pessoas essas fantasias que podem ser interpretadas de maneira diferente. No fundo é a tentativa de utilizar um símbolo (Excalibur) como alavanca de força e de esperança.”
Peça do Coração: EXCALIBUR é um objeto híbrido, composto por vários fragmentos do processo de criação chamado Floresta Invisível. Estes fragmentos são fruto do mapeamento das árvores mais antigas da área da grande Lisboa (Alcântara, Lumiar, Loures e Benfica). Alguns destes fragmentos são imagens (fotografia e vídeo) que vão sendo projetadas ao longo da peça, sugerindo uma presença constante dos ninjas durante a performance. Nas palavras dos seus intervenientes, a Floresta Invisível é “um espaço de performance autónomo e móvel”. A imagem da Floresta Invisível ajuda-nos a entender a subjetividade dos ninjas: possíveis guardiães ou guerreiros das florestas. A rede (network) subterrânea das florestas é essencial para a formação dos ecossistemas, a comunicação subterrânea das raízes e dos fungos é fundamental para a formação da vida na Natureza. Esta rede poderá ser uma das imagens da Floresta Invisível. Mariana Tegner Barros convida o público a abrir os sentidos na procura de conferir visibilidade ao invisível, som ao silêncio, forma e sentido ao desconhecido.
A performance começa com a entrada dos ninjas na sala. Avançam ocupando as escadas laterais da plateia. De cara tapada, cobertos de preto, e segurando bandeiras com símbolos impressos em serigrafia. Tal como os ninjas, a música também está sempre presente durante a performance. Por um lado, assumindo a forma de sonoplastias e sons-atmosfera, por outro assumindo o ritmo da batida que desencadeia a ação. As bailarinas estão seminuas com partes do corpo manchadas de preto, movendo-se entre e com a terra que está no chão. A coreografia parte do chão — como se estivessem a emergir do subterrâneo, da Floresta Invisível. Entram em contacto entre si, fazendo desse encontro uma pista para o movimento que vem a seguir. Contudo, os corpos intervenientes na performance não se relacionam apenas desta maneira. Observamos também coreografias (aparentemente) focadas em si e na sua relação com o espaço, ou seja, que poderiam ser olhadas como coreografias isoladas. A potência do espaço cénico é construída ao colocar estas várias singularidades em jogo, abrindo possibilidades de relação entre os movimentos e os sons de cada um, suscitando a partilha da subjetividade da experiência performativa.
Ao longo da peça ouvimos uma voz que nos acompanha, sugerindo um tempo e as diferentes fases que atravessamos dentro dele. Simultaneamente são projetadas frases explicitando essas mesmas fases. Numa delas é invocada a deusa Kali. Kali é indispensável há eliminação dos demónios de Raktabija, o demónio que renascia sempre que uma gota do seu sangue caia sobre o chão. Shiva e Dura tentaram matar os vários demónios de Raktabija sem sucesso, e em desespero, Kali surge para os ajudar. Kali cortava estrategicamente a cabeça dos demónios para depois lamber o seu sangue, não deixando que este caísse no chão. Desta forma os demónios de Raktabija foram eliminados. Os demónios de Raktabija podem ser uma imagem para o “demónio” que atormenta as florestas e que é mencionado direta e indiretamente ao longo da peça: os incêndios. O fogo posto e as queimadas são a maior causa dos incêndios em Portugal, sendo por isso o principal motivo da desflorestação nacional. O demónio está, portanto, em nós, e urge uma necessidade de mudança de modo a combater este flagelo. Esta mudança passa por uma forma diferente de agir, de pensar, de nos relacionarmos com o mundo e a Natureza. A imagem da Excalibur para Mariana Tengner Barros representa isto mesmo: uma nova maneira de ser e estar através das múltiplas relações entre a singularidade e a pluralidade, uma nova perspetiva sobre o mundo, e uma nova maneira de o habitar.
As cenas finais do espetáculo são um jogo de vassouras, e a limpeza da terra utilizada durante a performance. Um conjunto de performers em patins, cada um com a sua vassoura, disputa um novelo de lã aludindo a um jogo de hóquei. Esta imagem torna-se ainda mais sugestiva pelo relato e consequente comentário que dois performers fazem durante a ação. É uma cena que nos transporta para o imaginário da criança, do corpo criança, e da importância do brincar na nossa interação com o mundo. A peça termina com um dos performers a varrer a terra espalhada pelo palco, insinuando que está a varrer as cinzas da floresta queimada, as cinzas que irão alimentar a Floresta Invisível.