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Resposta Aberta: Luca Staccioli

Resposta Aberta é uma série especial de entrevistas com artistas, curadores, escritores, compositores, mediadores e “fazedores de espaços” internacionais. Atendendo aos temas que rapidamente emergiram como consequência da pandemia de Covid-19, oferecemos, aqui, uma perspetiva diferenciada e honesta de compreensão. Semanalmente, várias serão as portas abertas à vida dos colaboradores e às suas experiências de prazer, produtividade, metafísica e mudanças de paradigmas. Idealmente estas conversas poderão servir de caixas postais e conduzir a uma maior empatia, unidade e cocriação. Resposta Aberta vai ao encontro da necessidade de tecer a autonomia de uma rede de comunicações consciente, em tempos de extrema perplexidade.

Luca Staccioli, artista visual e investigador, estudou filosofia e pintura na Academia Ligústica de Belas Artes em Génova, e arte visual e estudos curatoriais na NABA, Nova Academia de Belas Artes, Milão.

Ganhou o Prémio Fabbri, na categoria de arte emergente em 2018. Um ano antes, em 2017, alcançou o segundo lugar nos Talent Video Awards, Careof, FIDMarseille, Mibact. Entre as suas recentes exposições individuais constam: 2018 – Donner à voir, Fondazione Pini, Milão; 2018 – The other other, familiar other, comissariado por Bite the Saurus, no Riot Studio, Palazzo Marigliano, Nápoles; 2017 – a mostra em duo Studio Visit, com curadoria de Pietro Gaglianò, no Museo Masaccio-Giovanni Mannozzi, San Giovanni Valdarno; 2017 – Je m’ouvrais pour la première fois à la tendre indifférence du monde, no Waiting Room JONAS, Trento, Itália. Entre as suas mostras coletivas: 2019 – Teatrum Botanicum, comissariado por Giulia Mengozzi, no Pav Padiglione di arte vivente, Turim; 2019 – Voi rubate del tempo alla fretta, a noi il mare ci impone lentezza, projeto CASTRO, comissariado por Alberta Romano e Vincenzo Di Marino, na Villa Di Lorenzo, HYPERMAREMMA, Ansedonia, Grosseto; 2017 – The Great Learning, curado por Marco Scotini, no Palazzo della Triennale, Milão; 2016 – NESXT, Kalki Club, Projeto atual, Q35, Turim. A prática artística de Luca Staccioli é baseada na investigação, orientada para o processo e envolve diferentes meios, entre eles vídeo, fotografia, pintura, desenho e colagem. Concebidas enquanto narrações, as suas obras questionam valores e formas de colonialismo pré-estabelecidos, a exploração da emocionalidade, os imaginários como tensões deflacionadas. A investigação de Staccioli estratifica e combina micro-histórias, memórias desenraizadas, além de objetos quotidianos e imagens nómadas que proliferam em dimensões globais-locais e dispositivos tecnológicos, com o objetivo de renomear os modelos de representação e descobrir novas ecologias.

 

Josseline Black – Numa reflexão sobre este recente período de isolamento forçado, como tem articulado a sua intervenção no discurso público? Qual é o seu papel nesta conversa mais ampla?

Luca Staccioli – Durante o período de isolamento, senti-me triste. O solipsismo da distância física trouxe consigo um profundo isolamento social, submerso pela violência das narrativas cataclísmicas veiculadas pelos meios de comunicação social e ardilosamente partilhadas nas redes sociais.

Nenhum dos substitutos centrados na comunicação e troca à distância poderia preencher o vazio imposto pelo físico: a nostalgia da presença aumenta. Tenho a sensação de que, trabalhando à distância e através de interfaces digitais, as pessoas são mais eficientes, mas menos enfáticas. A crise, as suas respostas públicas e as suas crónicas, é tão influenciada por políticas anti-ecológicas nos domínios social, cultural e ambiental, que acabo por não me surpreender, mesmo que esteja bastante assustado.

JB – O isolamento foi súbito ou já estávamos num isolamento imposto, numa normatividade, em modelos de representações, em hiperdigitalizações da vida?

LS – Apesar disto, é possível encontrarmos, aqui e ali, vislumbres de uma preciosa suspensão de funcionalidade. Como uma fenda florida num vidro, que quebra barreiras ao longo da superfície.

Há algo mágico na suspensão dos hábitos e da performatividade. Isto poderia desencadear um espaço político capaz de imaginar significados alternativos aos tempos atuais.

Como artista, devo questionar as iconografias do poder e a consequente alienação que provocam nos indivíduos e comunidades. A arte pode ser uma lente fundamental e crítica para o conhecimento. Penso que fazer arte hoje, sem afirmações simples ou autorreferências, mas sim com uma abordagem íntima, vertical e reimaginativa, é uma forma impactante de falar às comunidades.

É necessária uma ecologia de representação e esta poderia abrir-se noutros campos a formas ecológicas de pensar.

Por esta razão, também gostaria de ter um papel na educação. Hoje quase tudo é imagem – produtos, marketing, comunicação, os eus, etc. A importância de uma compreensão da imagem no seu processo contínuo de falsificação, estratificação, exploração é sublinhada pela necessidade de identificar o papel das imagens nas narrativas culturais e sociais de massas. É uma parte fundamental de uma ecologia de representação para alcançar uma ecologia mental e social mais difundida, uma visão holística alternativa e não homologada da consciência.

JB – A sua prática artística mudou com isolamento?

LS – Creio que a minha prática está a tornar-se mais íntima, bem como política e imaginativa.

Continuei a desenvolver a ideia de um novo vídeo intitulado Touch me, I’m sick: uma família de avatares vive numa realidade descarnada, marcada por uma colonização viral e generalizada da vida, sob a influência das expetativas e performatividade. Os membros da família estão a seguir um tutorial para aprenderem a ser impiedosos e produtivos (10 formas de melhorar a sua classificação SEO – 10 formas de enterrar os seus amigos). Acham que o seu bebé está doente, por mijar em tudo o que é canto e chorar. Mas o bebé, recusando a adulteração (metáfora para o neoliberalismo), é um herói, transformando-se livremente em formas alternativas e animistas. A doença deixa de ser uma categoria do poder que retrata. E, na sua suspensão da funcionalidade, surge como uma forma de libertação.

Mesmo que o projeto pareça influenciado pelo período atual, esta crise acabou por confirmar muitas ideias que vinha a desenvolver em obras de arte anteriores. Por exemplo, o meu último vídeo Please stand behind the yellow line DHG (2018-19) retrata o solipsismo de uma realidade altamente regulamentada. Num ambiente doméstico grotesco e perturbador, os gestos quotidianos são marcados pelo despertador de um telemóvel, por luvas de borracha amarelas que todos usam. O corpo desaparece: é o dissipatio da humanidade. Mas os restos continuam a sobreviver; tendo perdido a sua funcionalidade, objetos e fragmentos de memórias tornam-se imagens de outra vida.

Comecei também a pintar, à procura dum tipo alternativo de materialidade e gestualidade, como resposta à negação do nosso social. O projeto chama-se Familiar pics, e recria um álbum de memórias familiares, que inclui paisagens, bestiários, herbário. Cada forma é composta por instruções de desfuncionalização e remodelação, semiótica de tutoriais, logótipos, imagens nómadas encontradas na internet.

JB – De que forma a pandemia influenciou a sua capacidade prática de produzir trabalho?

LS – No vazio da suspensão, encontrei um espaço fértil para pensar. Foi um momento puramente especulativo, sem o intuito de produzir uma mostra ou o que quer que seja. Não se tratava de ser produtivo, apenas tentar ser reflexivo e ir mais fundo. A suspensão é uma frágil epifania onde podemos tentar criar significados e visões alternativas do mundo.

JB – Qual é a sua abordagem à colaboração neste momento?

LS – Quero começar algumas colaborações. Por um lado, pintar, enquanto campo de experimentações íntimas. Por outro lado, adorava desenvolver o novo vídeo Touch me, I’m sick, ao colaborar com um artista e um escritor que aprecio profundamente.

JB – Como definiria o momento presente, do ponto de vista metafísico/literal/simbólico?

LS – Um terreno baldio descarnado, com porno-necrofagia mediatizada, monitorização biométrica, necropolítica e comunicações híperdigitais.

Distanciamento física e social, normatividade, além da colonização de imagens produzidas e a contínua produção de fraturas e categorias opostas. Por exemplo, exploram-se conceitos como vitalidade, doença, saúde, bem como comunidade, produtividade, progresso ou natureza, na maioria dos casos sem ter em consideração um contato holístico com a realidade e experiências.

Extrapolando, o poeta italiano Camillo Sbarbaro escreveu: ” […] Perduta ha la sua voce / la sirena del mondo, e il mondo è un grande / deserto. / Nel deserto / io guardo con asciutti occhi me stesso. »1

JB – Vê potencial para um apoio renovado à produção cultural, apesar das macro e microeconomias atravessarem atualmente uma rápida reestruturação?

LS – Sou cético, mas espero que haja espaço para apoio à produção cultural. Há um projeto interessante chamado Art Workers Italia. Em Itália, precisamos de mudanças neste campo.

JB – E.M Cioran escreve: “perante as grandes perplexidades, tentemos viver como a história foi feita e reagir como um monstro repleto de serenidade”. Como responde a esta proposta?

LS – Gostaria de responder apenas com Studio per un figlio #1 (2018). No centro de Donner à voir, exposição que fiz na Fondazione Pini, em Milão, havia uma figura, uma espécie de autorretrato: era o filho da História e das suas narrativas alienantes. Studio per un figlio #1 é um corpo ambíguo: uma não-identidade feita de restos domésticos e quotidianos, sinais, pós-família e pós-história. É um berço ou uma gaiola? Memórias fragmentadas destruídas e recompostas que materializam uma criatura inspirada nas pinturas de Wols.

JB – Como é que este período está a influenciar a sua perceção da alteridade em geral?

LS – A doença e o isolamento social/físico levaram-me a refletir sobre a violência da proximidade, a alienação da distância e a ideia de suspensão. A doença é uma espécie de alteridade: exótica e endótica. Dum ponto de vista plural e coral, é vivida com emocionalidade impulsiva, medo, distanciamento, superstição.

A alteridade é o desconhecido, o incompreensível: um processo de representação individualista e massificado. É uma categoria que regula todos os elementos estranhos e não alinhados com o sistema de valores vigente.

Recentemente, lemos e ouvimos muitas destas representações em resposta ao medo de algo incontrolável, pelo menos em Itália, durante a crise. Alguns exemplos: a alteridade foi enquadrada em restaurantes chineses, no exterior, nas ruas, nos nossos amigos, no turista, na “movida”, nos jovens, etc., etc. É muito móvel e monumental ao mesmo tempo, e a sua utilização é dissimulada.

Não mudei a minha perceção de alteridade. Tenho vindo a desenvolver considerações sobre a alteridade em muitas das minhas obras de arte: em Windowscape (2015), uma viagem numa vidraça enquanto geografia abstrata mostra a ambiguidade da representação; em Please stand behind the yellow line, a alteridade percorre a superfície do quotidiano; o meu vídeo intitulado Was it was me? Screen memories (2016-17) é uma viagem voyeurística através de memórias familiares e lugares desconhecidos, filmada no ecrã do computador. As imagens fluem devido à anulação enganadora das distâncias geográficas e existenciais, impulsionadas pelos processos de aceleração e progresso tecnológico. O projeto levanta questões sobre a criação da alteridade e o papel das imagens nas narrativas culturais: a identidade surge como dúvida.

Na minha opinião, a alteridade poderia ser uma importante suspensão do valor estabelecido: uma inversão de significados é muito importante. É enriquecedor viver o espaço entre o nosso eu e a alteridade: tentar construir memórias e imagens a partir daquilo que desestabilizou o significado comum aceite descerra perspetivas alternativas.

JB – Qual é a sua posição sobre a relação entre a catástrofe e a solidariedade?

LS – O medo torna os humanos mais individualistas. Enquanto a emocionalidade for explorada pelo mercado, e a comunicação e as catástrofes forem retratadas pelos meios de comunicação em massa como novelas, não creio que seja possível encontrar uma ecologia social holística, capaz de se abrir à solidariedade e empatia.

JB – Qual é agora a sua utopia?

LS – Posso dizer que a lógica do lucro, alimentada por modelos de representações da História, identidade e consumo, cria constantemente um processo de simplificação, no qual uma complexidade fluida e holística é reduzida a categorias e estruturas rígidas. A complexidade não encontra tempo e espaço nas atuais acelerações sociais e modalidades hiperestimulantes de comunicação. Pelo contrário, acredito radicalmente que há algo mágico em enfrentar a complexidade – por exemplo, quando confrontados com a atual degeneração do individualismo, ou com as questões esmagadoras do neoliberalismo, o valor da complexidade poderia ser uma cura. Uma espécie de utopia.

Josseline Black é curadora de arte contemporânea, escritora e investigadora. Tem um Mestrado em Time-Based Media da Kunst Universität Linz e uma Licenciatura em Antropologia (com especialização no Cotsen Institute of Archaeology) na University of California, Los Angeles. Desempenhou o papel de curadora residente no programa internacional de residências no Atelierhaus Salzamt (Austria), onde teve o privilégio de trabalhar próximo de artistas impressionantes. Foi responsável pela localização e a direção da presidência do Salzamt no programa artístico de mobilidade da União Europeia CreArt. Como escritora escreveu crítica de exposições e coeditou textos para o Museu Nacional de Arte Contemporânea do Chiado, Madre Museum de Nápoles, para o Museums Quartier Vienna, MUMOK, Galeria Guimarães, Galeria Michaela Stock. É colaboradora teórica habitual na revista de arte contemporânea Droste Effect. Além disso, publicou com a Interartive Malta, OnMaps Tirana, Albânia, e L.A.C.E. (Los Angeles Contemporary Exhibitions). Paralelamente à sua prática curatorial e escrita, tem usado a coreografia como ferramenta de investigação à ontologia do corpo performativo, com um foco nas cartografias tornadas corpo da memória e do espaço público. Desenvolveu investigações em residências do East Ugandan Arts Trust, no Centrum Kultury w Lublinie, na Universidade de Artes de Tirana, Albânia, e no Upper Austrian Architectural Forum. É privilégio seu poder continuar a desenvolver a sua visão enquanto curadora com uma leitura antropológica da produção artística e uma dialética etnológica no trabalho com conteúdos culturais gerados por artistas. Atualmente, está a desenvolver a metodologia que fundamenta uma plataforma transdisciplinar baseada na performance para uma crítica espectral da produção artística.

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