Pequenos relatos sobre um mundo em ininterruptos acabamentos
Em 2015, a convite de um projeto que reunia artistas e antropólogos, fui aos jogos mundiais indígenas, em Palmas, Tocantins, Brasil. Entre uma e outra arena aonde os jogos ocorriam, havia espaços destinados a rodas de conversas. Um tema constante dessas rodas – e que suscitou também diversas interrupções/manifestações durante os jogos – era a PEC 215 que alterava as leis para demarcação de terras indígenas, de reservas e de comunidades quilombolas.
O etnocídio dos povos originários se mostrava, mais uma vez, muito bem arquitetado pelo projeto nacional desenvolvimentista do governo e suas ramificações no agronegócio. Ao longo dos dias a pauta das rodas de conversas estendeu-se para as concepções de fins de mundos.
Em uma tarde sem muitas atividades fomos, eu e um pequeno grupo a convite do artista boliviano Bernardo Zabalaga, ao encontro de Dona Romana, na cidade de Natividade, em Tocantins. O percurso da estrada, que durou algumas horas, era aterrorizante. Uma paisagem arrasada pela monocultura em toda sua vastidão. Durante quilômetros e mais quilômetros, estávamos atravessando um deserto de soja.
Ao chegar à casa de Dona Romana ela nos contou o chamado que havia recebido para a construção do jardim de esculturas em pedras e de todos os galpões que compunha sua casa. Em um grande quarto Dona Romana armazenava quilos de sementes. Variados grãos como feijão, arroz, milho acumulavam-se em grandes baldes e preenchiam as prateleiras, do chão ao teto, do cômodo. Em outro ambiente eram armazenados centenas de litros de água em garrafas que empilhadas formavam uma grande montanha. Dona Romana nos falava sobre a inversão do eixo da terra e do deslizamento de veneno que iria cair sobre o mundo. A região de Natividade seria (ou será) uma das poucas regiões não afetadas e, tornando-se lugar de refúgio, todos aqueles suprimentos seriam providenciais. Era preciso equilibrar o eixo da terra e era preciso preparar-se. Dona Romana nos mostrou, dentre tantas outras coisas, os equipamentos cirúrgicos do futuro que ela estava a confeccionar para salvar as pessoas infectadas com o envenenamento da terra.
O fim dessa tarde – que relato acima de forma muito sucinta e deixando de fora uma quantidade sem fim de importantes acontecimentos – foi antecipado por uma tempestade que se anunciava no horizonte. Como iríamos pegar estrada e eu estava dirigindo o carro que alugamos, encerramos a conversa quando Dona Romana mostrava os seus cadernos de notas com um alfabeto que, entre nós, apenas ela compreendia.
Ao percorrermos um pouco mais de 20 minutos um senhor, abrigado contra a chuva em uma das poucas árvores da região e sob o risco de ser atingido por um raio, nos pede carona.
Entrou calado, com um tímido obrigado, sentou-se com um dos braços para o lado de fora da janela do carro, apontando, com o dedo, as pesadas nuvens que achatavam a paisagem fúnebre das plantações de soja.
Minutos depois perguntei para onde ele ia, aonde ele ia descer, já que eu não recordava ter visto muitas cidades durante o percurso e estava incerto se ele seguiria conosco até Palmas.
Ao futuro. Desço de onde vim. Ao futuro, lá descerei. Imediatamente mandou que eu parasse o carro e desceu agradecendo a boleia. Ficamos sem entender o que havia ocorrido e percebemos que o senhor, que misteriosamente já não estava em nosso campo de visão, deixara cair um livreto com o texto que transcrevo a seguir:
“Ao futuro, reiteradamente sentenciado entre os discursos salvacionistas e os apocalípticos, cabe inventar outras narrativas.
Há, decerto, a concepção judaico-cristã do tempo que nos atravessa como sendo, supostamente, única. Há, também, O Aleph, em Borges, no porão de uma casa prestes a ser demolida, um dos pontos do espaço que contêm todos os pontos. Haveria seu correspondente no tempo? Há Cadmo, que introduziu o alfabeto fenício na Grécia. Do Aleph deriva o Alfa, primeira letra no alfabeto grego, de onde surge o A do alfabeto cirílico e o A do latim. Sendo, no alfabeto grego, o Ômega a última letra. Dizer eu sou o Alfa é dizer eu sou o começo. Dizer eu sou o Ômega é dizer eu sou o fim. O ponto fundador de algo. O ponto final. Nessa perspectiva, a experiência do tempo insere-se nesta lacuna do que passou em direção ao que virá. Uma economia bíblica do tempo. Esta chuva de onde provêm as estrelas caídas, diz o texto sagrado:
“(…) Houve, então, um grande terremoto. O Sol ficou negro como saco de carvão. A lua inteira, cor de sangue. As estrelas do céu caíram sobre a Terra, como figueiras soltando figos verdes quando sacudidas por um vento forte. O céu enrolou-se como uma folha de pergaminho. Todas as montanhas e ilhas foram arrancadas do lugar (…).”[1]
A terra em colapso aponta para as mudanças que se iniciam.
A inoperância da predição catastrófica, requer também uma outra postura diante da salvação ansiada.
Aqui a seta do tempo sofre uma deformação, não se trata mais de uma linearidade absoluta do tempo, mas de uma seta que se dobra ao presente e fratura-o.
Se é fato que os personagens bíblicos trazem consigo as marcas de um passado longínquo[2], as digitais de uma mão que os moldou, a memória da matéria, do barro, seria a genealogia um possível desfazimento do molde, do que foi moldado, de quem moldou? À meticulosidade em revolver a terra e nela demorar-se não com o intuito de descoberta de uma origem no passado, corresponderia a fazer falar as contingências históricas e linhas de força no presente?
O silêncio no Céu durante meia hora, após a abertura do sétimo selo.
O quinto anjo toca a trombeta.
“(…) Vi então uma estrela que tinha caído do Céu sobre a Terra. Ela recebeu a chave do poço do Abismo. E abriu o poço do Abismo e dele subiu uma fumarada como a de uma grande fornalha. O Sol e o ar escureceram com a fumarada do poço. Da fumarada saíram gafanhotos que voaram sobre a Terra. Tinham poder de matar como escorpiões. Receberam ordem de não estragar a vegetação da Terra, nem o verde, nem as árvores. Só podiam ferir os homens que não tivessem na fronte a marca de Deus. Os gafanhotos não tinham permissão de matar. Mas podiam atormentar os homens durante cinco meses, com dores fortes, como picadas de escorpião. Naqueles dias, os homens vão correr em busca da morte, mas não saberão onde ela está. Vão querer a morte, mas a morte fugirá deles.
Os gafanhotos pareciam cavalos aparelhados para a guerra; parecia que tinham na cabeça coroas de ouro, e os seus rostos pareciam rostos humanos. Tinham cabelos compridos como as mulheres, e dentes de leão. Tinham couraças que pareciam ferro, e o barulho de suas asas parecia o barulho de carros com muitos cavalos, correndo para a batalha. Tinham ferrão na cauda, como os escorpiões. E era na cauda que estava o poder de atormentar os homens durante cinco meses. (…)”[3]
Esta não é a primeira aparição dos gafanhotos. Aqui foram privados de atacar a vegetação, o verde, as árvores. A privação da própria morte garantiu que os homens, sem escolhas, fossem amofinados ao longo dos meses. Os gafanhotos surgem do Abismo junto a fumarada. Na primeira aparição dos gafanhotos, na oitava praga do Egito, estes insetos são enviados junto a um sopro, um vento oriental. Ao contrário, e anterior, da narrada acima, os gafanhotos devoraram toda a vegetação que restava após a chuva de granizo.
“(…) Quando amanheceu, o vento oriental já havia trazido os gafanhotos. E os gafanhotos invadiram todo o território egípcio, e eram tão numerosos como nunca houve antes e nunca mais haverá. Cobriram toda a superfície do solo e devastaram a terra. Devoraram toda a vegetação do solo e todo o fruto que o granizo tinha deixado nas árvores. E em todo o território egípcio não ficou nada verde nas árvores, nem na vegetação do campo. (…).”[4]
Ao futuro, reiteradamente sentenciado entre os discursos salvacionistas e os apocalípticos, cabe inventar outras narrativas especulativas implicadas no porvir do e no presente.
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[1] Bíblia Sagrada. São Paulo. PAULUS Editora, 2012. (Apocalipse, 6, 12-17). p.1815.
[2] Sobre o passado dos personagens bíblicos, ver a relação destes com os heróis homéricos desenvolvidos por Eurich Auerbach (AUERBACH, Eurich. Mimesis. São Paulo: Editora Perspectiva, 2015) e retomado por François Hartog (HARTOG, François. Regimes de Historicidade: presentismo e experiência do tempo. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2015).
[3] Bíblia Sagrada. São Paulo. PAULUS Editora, 2012. p.1815. (Apocalipse, 9, 1-12). p.1817.
[4] Idem. (Êxodo, 10, 11-15)