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Como silenciar uma poeta, de Susana Mendes Silva, no MNAC

O silêncio poderá ser entendido de vários modos. O seu significado traduz-se na cessação de qualquer ruído, na abstenção da fala, no sigilo, na omissão de uma explicação ou na interrupção de comunicação. Sendo que para que haja silêncio, terá necessariamente que existir fala. Parafraseando o texto escrito no âmbito do projeto As coisas fundadas no silêncio, “falar e não falar são duas formas de estar no mundo, de que muitas vezes depende a própria vida”.

Inserida neste projeto, a exposição Como silenciar uma poeta de Susana Mendes Silva (Lisboa, 1972), com curadoria de Marta Rema, surge a partir do silêncio a que a poetisa portuguesa Judith Teixeira (1880-1959) foi sujeita perante a (i)moralidade da sua obra.

Em 1923, o seu primeiro livro Decadência, em conjunto com os livros Canções de António Botto e Sodoma Divinizada de Raul Real, foi apreendido e queimado na sequência de uma campanha liderada pela conservadora Liga de Acção dos Estudantes de Lisboa contra “os artistas decadentes, os poetas de Sodoma, os editores, autores e vendedores de livros imorais”. A queima foi feita no convento de São Francisco, antigas instalações do Governo Civil de Lisboa e hoje parte integrante do Museu Nacional de Arte Contemporânea, onde a exposição tem lugar. O erotismo, homossexualidade e insubmissão femininas inscritos na obra de Judith, conduziram a que tenha sido “silenciada” permanecendo injustamente esquecida até muito recentemente.

Ao entrar na exposição ouve-se: “António Ferro, numa palestra sobre Colette proferida a 6 de novembro de 1920, diagnosticou a impossibilidade de existir uma escritora portuguesa moderna como ela, uma vez que Lisboa não era Paris: ‘Em Portugal, Colette não seria possível. Todos os escrevinhadores, todos os aparos sujos da minha terra, cairiam sobre ela acusando-a de imoral, de fútil, de extravagante!’”. De seguida, Susana Mendes Silva profere o ousado poema da escritora Flores de Cactus, “Flores de cactus resplandecentes; Espelhantes, encarnadas! (…)”.

O ambiente escuro da sala onde vários elementos são cenograficamente iluminados evocam o universo rebelde, corajoso, ousado, de desejo feminino, lésbico de Judith Teixeira e desafiam preconceitos que ainda hoje existem. Para além do som, através do qual se escutam as palavras descritas no parágrafo anterior, imagens projetadas e um objeto escultórico compõem um todo tratando-se de uma única instalação.

Num primeiro plano lêem-se palavras de Marcello Caetano publicadas na revista pró-fascista Ordem Nova, em 1926, relativas a uma “Arte sem moral nenhuma” onde refere os “livros obscenos” de António Botto, Raul Leal e “duma desavergonhada chamada Judith Teixeira” sendo que “sem escolha, se procedeu à cremação daquela papelada imunda, que empestava a cidade”. Ao fundo da sala um ponto de interrogação projetado interroga o título da própria exposição “Como silenciar uma poeta (?)” colocando em questão todos os motivos que conduziram aos violentos ataques a que a escritora foi sujeita e ao seu consequente silenciamento até ao fim da vida.

O objecto escultórico no chão é composto por três ripas em madeira, suportes de colchão que outrora fizeram parte da estrutura de uma cama, dispostas segundo uma forma triangular sobre a qual repousam representações de clítoris, órgão sexual feminino. Na parede é possível ler a “receita” de como se silencia alguém, nomeadamente uma mulher, e uma imagem do rosto de Judith Teixeira, face praticamente desconhecida.

Para além da exposição tiveram lugar três momentos performativos, os quais Susana Mendes Silva refere fazerem parte do trabalho que desenvolveu para o MNAC. Em Tradução #1, com Alda Calvo e Tradução #2, com Patrícia Carmo, o poema Flores de Cactus foi traduzido para Língua Gestual Portuguesa e para Mirandês. Em De mim, Marta Rema procedeu à leitura performativa da conferência em que Judith Teixeira explica “as minhas razões sobre a Vida, sobre a Estética, sobre a Moral” (1926), tratando-se do único manifesto modernista escrito por uma artista portuguesa e através do qual a autora se defende dos ataques e críticas a que vinha sendo sujeita desde 1923.

O conjunto de todos estes elementos, ao mesmo tempo que coloca em questão a censura, violência e humilhação a que Judith foi exposta, revela a sua obra de modo a que lhe seja conferido o merecido destaque enquanto “a única poetisa modernista” portuguesa, nas palavras de António Manuel Couto Viana, que afirma ainda acerca da sua obra poética: “separando muito trigo de muito joio, penso-as merecedoras de melhor sorte do que o silêncio, a ignorância, a que têm estado votadas.”

Um silêncio que surge “perante um mundo cada vez mais ruidoso onde apesar disso ainda existem silenciamentos, onde ainda existe necessidade de dar voz”, refere Marta Rema. A exposição Como silenciar uma poeta levanta questões sem dúvida atuais, uma vez que quase um século depois, continuamos a confrontar-nos com diversos tipos de discriminação, seja social, cultural, étnica, política, religiosa ou mesmo sexual.

A singular voz de Judith Teixeira, raro testemunho feminino do período modernista em Portugal, é agora finalmente ouvida, através da exposição Como silenciar uma poeta de Susana Mendes Silva, que por coincidência ou não, abriu as suas portas ao público a 10 de junho de 2020, dia de Portugal e mês do orgulho LGBT, e poderá ser vista até ao dia 30 de agosto no MNAC em Lisboa.

Joana Duarte (Lisboa, 1988), arquiteta e curadora, vive e trabalha em Lisboa. Concluiu o mestrado integrado em arquitetura na Faculdade de Arquitetura da Universidade de Lisboa em 2011, frequentou a Technical University of Eindhoven na Holanda e efetuou o estágio profissional em Xangai, China. Colaborou com vários arquitetos e artistas nacionais e internacionais desenvolvendo uma prática entre arquitetura e arte. Em 2018, funda atelier próprio, conclui a pós-graduação em curadoria de arte na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa e começa a colaborar com a revista Umbigo.

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