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Entrevista a Elizabete Francisca

Elizabete Francisca é bailarina e coreógrafa. Faz parte do coletivo de artistas d’Apneia Colectiva e é apoiada pelo Rumo do Fumo, estrutura de Vera Mantero. O seu trabalho atravessa universos oníricos, pessoais e políticos. Comunica através de símbolos e transforma a cena num espaço de reflexão. Falámos de algumas peças passadas, das futuras, e da situação política e económica actual fruto da pandemia da Covid-19.

 

Rodrigo FonsecaNO Gesto (2019) as perguntas que surgem são muito semelhantes a um corpo que dança. Por exemplo: “Onde reside o poder emancipatório de um gesto quando ele pode ser entendido na sua totalidade e na sua riqueza? Além de corealizadora, sentiste-te também coreógrafa?

Elizabete Francisca – Esta curta surge a partir do projeto À volta da mesa: para um imaginário do gesto, que coordenei em Lisboa (2016). Um projeto iniciado por Loïc Touzé e Anne Kerzerho (ATT), e que foi implementado em várias cidades do mundo. Pretende levar o pensamento coreográfico para fora dele, criando diálogo com outros conhecimentos do corpo, do saber-fazer de outras atividades ou profissões, por exemplo: carpinteiros, médicos, empregadas de limpeza, arrumadores do lixo… Através de encontros e entrevistas percebermos que gestos e que corpo é criado em relação subjetiva com determinada atividade: “Como é que fazes o que tu fazes?” Quisemos chegar a este conhecimento (fazê-lo existir) porque normalmente as pessoas não pensam sobre ele. De certa forma, posso sentir que fomos todas coreógrafas. O filme passou por encontrar um fio condutor entre diferentes fazeres e universos. São retratos de gestos e daquilo que os pode interligar.

RF – De que maneira os projetos Around the table(ATT) de Loic Touzé e Anne Kerzerho; e LAB de Mark Tompkins, Gilles Toutevoix, Meg Stuart, influenciam o teu trabalho?

EFAround the Table é um projeto coletivo. Quem quiser pode fazer parte da equipa e implementar o projeto no lugar onde vive, construindo-se assim uma cartografia de saberes ligado a uma região geográfica. As memórias que tenho destes encontros enriquecem ainda hoje o meu quotidiano. Muitas vezes na rua, quando olho para um caixote do lixo, lembro-me de um arrumador de lixo em Nantes que dava nome a cada caixote da cidade! Lembro-me também de uma cozinheira que dizia que cozinhar era como tocar bateria. Percebia o nível de cozedura dos alimentos quando batia com a colher de pau na borda das panelas. Foi um projeto muito interessante porque saí um pouco do círculo das artes performativas. No LAB é quase o contrário. Fui convidada a integrar um grupo de artistas para pensarem o que é improvisação, fazendo, dançando, improvisando no estúdio e na vida. Depois do LAB apresentámos os espetáculos de improvisação (Serious Fun) confrontando-nos com outras experiências, e gerando outro tipo de informação, só possível com público. A improvisação é algo muito presente na minha prática de dança e nos processos de criação. Os espectáculos de improvisação são sempre experiências fortíssimas! Lidas com algo que pode inevitavelmente ser um fracasso, não controlas o que pode acontecer, não sabes o que vai acontecer.

RF – Está sempre tudo num edge

EF – Sim, living on the edge! Quando se improvisa pratica-se uma presença muito especial… Diria até necessária! Um lugar onde o corpo e o espírito abraçam um fluxo contínuo de percepção a vários níveis. Um corpo que está constantemente a analisar, a intuir, a sentir, e por conseguinte, a tomar decisões. Relaciona-se com o que está à volta, mas também contigo, daí ser uma aprendizagem sobre possíveis ideias que tenhamos, julgamentos, padrões ou tendências. Procurar lugares de “não-saber” e confiar.

RF – Fala-me sobre A Besta, As Luas e Dias Contados. Tens já datas de apresentação depois de terem sido canceladas?

EF – A próxima data para Os Dias Contados será na primeira semana de Fevereiro de 2021, no TNDMII. Depois vamos à Moita, a Loulé e a Ílhavo. Dias Contados surge num momento em que estava em risco de despejo (2017), e de facto, isso consumiu-me. Tinha noção da situação que atravessávamos, do processo de “reabilitação” da cidade transformada cada vez mais num lugar carcaça, prêt-à-porter. Não conhecia, porém, os problemas a fundo. Estava numa altura muito precária, não encontrava uma casa que conseguisse pagar… Comecei a questionar a minha vida toda. Procurei ajuda e conheci a Habita e a Stop Despejos. Comecei a trabalhar com eles ajudando no que podia. Portanto, Dias Contados é sobre a crise da Habitação. a besta, as luas, terá uma apresentação de processo dia 3 de outubro no âmbito do Festival Cumplicidades, no Jardim do Museu de Lisboa.

RF a besta, as luas também partiu de uma experiência pessoal?

EF – Sim, de várias. a besta, as luas é um trabalho feminista. Queria criar uma dança onde não existisse hierarquia, na qual o sexo tivesse tanto valor como a axila ou uma perna, de forma a “dançar com o corpo todo”, aceitando-o. É uma peça de tomada de posição contra um sistema patriarcal, de força e de emancipação. Há uma luta social que ainda está por fazer. Temos que desconstruir as ideias que nos fizeram achar inferiores, menos capazes, inteligentes, detentoras da nossa vida, do nosso corpo, do nosso prazer. A energia vital feminina é poderosa e transformadora, mas foi sendo destruída. Falo de mulheres porque sou mulher, e sofro muito machismo em Portugal. Revolta-me imenso. Ainda é tão evidente… Mas ainda se diz que não existe. É como dizer que não existe racismo em Portugal.

RF – Como olhas para esta união dos trabalhadores e artistas da indústria cultural por consequência da pandemia da Covid-19? Achas que esta união está mesmo a acontecer?

EF – Está. Criou-se, por exemplo, a Acção Cooperativista que está a fazer um trabalho incrível de entreajuda e de pressão à tutela, que tem contado com uma adesão e uma equipa incansável nas várias frentes de trabalho. O Governo e a Segurança Social abandonaram por completo os profissionais da Cultura. Os apoios da Segurança Social são ridículos e as iniciativas do MC — que só soube fazer concursos — deixaram a maior parte da comunidade na miséria. Por outro lado, iniciativas locais de grupos informais geraram uma rede de solidariedade imediata de bens essenciais, como o RDA, o Disgraça, A Brigada do Bairro, o Provisório.

Rodrigo Fonseca (1995, Sintra). Estudou na António Arroio, é licenciado em História da Arte e mestre em Artes Cénicas pela FCSH/UNL. Foi cofundador da editora CusCus Discus e do festival Dia Aberto às Artes. Além da Revista Umbigo, faz crítica musical na plataforma Rimas e Batidas. É técnico de som especializado em concertos e espectáculos e artista residente da associação cultural DARC.

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