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Da periferia vê-se a cidade – Catarina Botelho no Pavilhão Branco

A intemporalidade da arte diz respeito à capacidade de determinadas obras permanecerem atuais – “contemporâneas” – à medida que se afastam do momento em que foram criadas. Há obras que somente respondem, ou pretendem responder, a uma necessidade imediata, própria do seu tempo. Outras, ainda que permanecendo iguais, reafirmam a sua pertinência sob diferentes contextos. Por contexto digo o enquadramento definido por circunstâncias voláteis, como a curadoria, o espaço, ou de forma mais ampla, os acontecimentos específicos de uma época.

Qualquer coisa de intermédio, de Catarina Botelho, inaugurou em janeiro de 2020, encerrou como tantas outras no período de quarentena, e reabriu em maio, num mundo diferente. A arte – ou o meu olhar -, contagiada pelo contexto: os mesmos trabalhos, no mesmo lugar, mas uma exposição diferente. Num intervalo de poucos meses as fotografias reunidas nas Galerias Municipais – Pavilhão Branco contam outra história. O mais estranho é pensar que no início do ano fossem capazes de antecipar o destino das cidades.

(E não será a intemporalidade da arte sinónima de distanciamento, apenas possível a partir da periferia, longe do centro?)

A exposição, com curadoria de Sandra Vieira Jürgens, ensaia um passeio pelos arrabaldes, pelos territórios incertos que desenham os limites urbanos. Os Lugares-de-ninguém onde a neutralidade da paisagem e a ausência de organização dão espaço à espontaneidade da natureza. As fotografias de C. Botelho espalham-se penduradas ou suspensas, com diferentes alturas e tamanhos, simulando os pontos de vista da própria câmara, a escala dos objetos representados, e acentuando a vertente coreográfica, que nos sugere determinadas posições corporais. Ora que nos agachemos ora aproximemos, guiando-nos por um trilho incerto, onde seguimos no encalço da presença humana, através dos despojos que vão sendo encontrados ao longo da caminhada.

No andar térreo da galeria, os vidros pintados a branco, como nas lojas em obras, remetem para o estado inacabado de uma arquitetura provisória. Por outro lado, enclausuram o público num percurso fotográfico por uma paisagem inóspita, de cores vibrantes, em que todos os elementos manufaturados contrastam com os tons resplandecentes da vegetação. No fundo, percorremos um lugar sem localização específica, possivelmente existente em qualquer parte do mundo, ao nos afastarmos dos grandes aglomerados populacionais, em direção às margens.

Como disse, regressar a esta exposição após o período de quarentena despoletou inevitáveis reinterpretações. Em parte, porque as imagens me eram agora familiares. Em poucos dias as cidades despiram as suas sólidas fachadas e revelaram a fragilidade dos sistemas que alimentam, e que as geram. A impossibilidade de prosseguir o dia-a-dia, e a imperativa distância social, levou-nos a procurar lugares periféricos onde se espera que os demais transeuntes não cheguem. São necessários poucos quilómetros para descobrir terrenos semelhantes, nas franjas das zonas habitacionais.

A precariedade destas ocupações temporárias ecoa a dificuldade de sobrevivência nos grandes centros urbanos. Quer por motivos económicos ou de adaptação, estas áreas são testemunhas de fugas, da opção pela marginalidade, e da recusa de um sistema que opera a uma velocidade muitas vezes e para muitos, cruel. As cidades, cada vez mais extensas, vivem num permanente estado de construção em curso, consequência de uma vertigem paradoxalmente destruidora, uma vez que continuam a galgar a paisagem que sobra nos arredores.

Ao centro da escadaria que conecta os dois andares, a fotografia de grande formato de uma árvore que surge/permanece entre duas porções de um muro, anuncia uma impossibilidade: a convivência igualitária da construção humana e da natureza; e um aviso: a construção humana – tal como a própria espécie – é efémera, mas a natureza encontra sempre meio para se desenvolver.

Se no andar de baixo nos afastamos da cidade, no de cima vamo-nos reaproximando. A ordenação e a junção de objetos sugerem formas de passar o tempo, motivo primordial para o impulso criativo; ou talvez sejam apenas detritos que transbordaram das cidades, incapazes de absorverem o excesso de lixo que produzem. De qualquer modo, são indícios de uma espécie descontrolada e invasora.

Na ilusória impenetrabilidade do betão e da pedra, vislumbra-se a falência das estruturas, afinal também elas provisórias, condenadas a serem ruína. A indestrinçável relação das cidades com a destruição da natureza, e a inflamabilidade dos frágeis pactos sociais que as viabilizam, fazem acreditar que a última imagem de qualquer coisa de intermédio seja presságio do seu destino: o regresso cíclico das chamas.

Numa altura em que vamos regressando às ruas, após o período de recolhimento obrigatório, os trabalhos de Catarina Botelho questionam os sistemas de organização social, a invisibilidade das margens, e a expansão imparável das malhas urbanas, por consequência do sistema económico (e de valores) vigente. O conjunto de fotografias corrobora o apetite da artista por descobrir lugares e formas para ficcionar contranarrativas, que sonham com modos existenciais alternativos.

Para ver até dia 05.07.2020 nas Galerias Municipais – Pavilhão Branco, Lisboa.

Francisco Correia (n. 1996) vive e trabalha em Lisboa. Estudou Pintura na Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa e concluiu a Pós-graduação em Curadoria de Arte na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Tem escrito para e sobre exposições. Simultaneamente desenvolve o seu projeto artístico.

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