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A arte em estado de calamidade | Entrevista a Fernando Santos

Faz no próximo mês de novembro 27 anos que o galerista Fernando Santos abriu o seu espaço expositivo na Rua Miguel Bombarda que tem sido, nos últimos anos, o epicentro da arte no Porto. Hoje, a Galeria Fernando Santos é, sem dúvida, uma das mais importantes da cidade, igualmente reconhecida em todo o país e o seu nome ecoa internacionalmente.

É sob o atual contexto de crise, problemático e desafiante para a esfera da arte, que se revela pertinente convocar alguém de tamanhos conhecimentos e experiência.

 

Constança Babo – Considerando que a Galeria Fernando Santos já abriu portas ao público, pergunto-lhe se incorporou algumas normas excepcionais, tais como a limitação de número de visitantes, a modificação do horário, o cancelamento ou a reestruturação dos eventos inaugurais? A zona de Miguel Bombarda é, aliás, conhecida pelas inaugurações simultâneas, cuja concretização está colocada em causa.

Fernando Santos – Neste momento e até Junho, as Inaugurações Simultâneas da Miguel Bombarda não terão o apoio institucional habitual, o que é compreensível. Algumas galerias, nas quais se inclui a Galeria Fernando Santos acabaram também por alterar a sua programação. Note-se que as exposições que atualmente se encontram em Miguel Bombarda não foram inauguradas, já que tinham inauguração marcada para dia 14 de Março [entre as declarações da OMS (11 de Março) e do Governo Português (18 de Março)]. Não faz por isso sentido privar o público de ver as obras destes artistas, nem privar os artistas de mostrarem as suas obras. Prolongaremos as exposições já preparadas até dia 31 de Julho e a partir daí mantemos a programação conforme planeado, sendo que as exposições não inauguradas durante o período em que a Galeria se encontrou encerrada transitam para o ano de 2021. Estamos abertos ao público desde dia 18 de Maio. As galerias são geralmente espaços amplos onde as pessoas circulam sem tocar em nada – a menos que a exposição em causa exija a interação – e por isso penso que é seguro o regresso do público às galerias de arte. Da nossa parte, teremos atenção à acumulação de visitantes e promoveremos o uso de máscara e a desinfecção das mãos e superfícies de contacto sempre que necessário.

CB – Sobre a programação e considerando também o cancelamento ou adiamento das feiras de arte, caso da ARCO Lisboa que começaria no próximo dia 17 e que, agora, se realiza exclusivamente online, pergunto-lhe como se recupera o que se impossibilitou devido às semanas de fecho e como se redefine o que já estava delineado?

FS – Relativamente à ARCO Lisboa e iniciativas análogas não podemos falar de expectativas goradas ou perdas, já que as feiras de Arte são como jogos: podemos ter sorte ou azar. As feiras são importantes para dar visibilidade à atividade e colocar em contacto os agentes do mercado num espaço e tempo limitados que convidam à transação. Mas a Galeria não programa – pelo menos a curto prazo – em função das feiras. Há, sem dúvida, compromissos assumidos e convites endereçados que ficaram sem efeito, mas para todos é compreensível que esta situação exige capacidade de adaptação. A Galeria continua a levar a cabo, mesmo em tempo de confinamento, todas as diligências de forma a fazer chegar aos clientes a informação relativa às exposições, aos artistas, às iniciativas. A forma de fazer esse trabalho é diferente, mas essa diferença e necessidade de adaptação é igual para todas as partes: artistas, galerias e públicos. Se cada uma delas perceber que só em conjunto, com abnegação e resistência é que somos capazes de superar as adversidades, então estas serão superadas.

CB – Enquanto galerista desde os anos 90, que já experienciou diferentes momentos de crise, nomeadamente durante a TROIKA, considera já ter adquirido as ferramentas necessárias para lidar com a pandemia mundial que hoje se enfrenta, ou sente-se em território desconhecido devido às particularidades e incertezas da atual calamidade, cuja natureza não é de raiz económica, mas sendo este um campo largamente afetado?

FS – Esta é de facto uma realidade nova: não há uma respostas unívocas e mudou (e mudará) a nossa forma de relacionamento seja pessoal, seja laboral. Ou seja, é provável que a forma como vivemos, como nos relacionamos, como pensamos, se altere, mas no fundo continuaremos a fazer as mesmas coisas por uma questão de sobrevivência e porque o ser humano tem uma memória curta. Enquanto galerista tive de me adaptar e adaptar a minha atividade – que, considero, exige o contacto presencial com o cliente e não somente o virtual – à nova realidade. Mas esta nova realidade não substitui, a meu ver, a antiga. Quem adquire arte terá sempre necessidade de ver a obra antes da aquisição.

CB – O Fernando também tem um restaurante, o Oficina, na mesma rua da galeria e sei que, com frequência, faz programações conjuntas e organiza tertúlias com artistas e figuras da cultura. Com curiosidade, penso sobre a relação entre ambos, a nível temático, logístico e até comercial. Questiono-o sobre como entende a crise ao nível dos dois contextos, a cultura e o turismo, a sua escala e se as suas repercussões e consequências se assemelham, equivalem e interferem mutuamente?

FS – O problema foi sempre esse: um crescimento económico baseado no turismo. É como alguém esperar uma proposta de casamento deixando-se ficar sentado em casa! Não podemos confiar no turismo para crescer. Como se viu agora – e como mais cedo ou mais tarde se iria constatar, pelo menos na cidade do Porto – essa é uma via de crescimento muito limitada; um poço com fundo. As galerias do Porto vão sentir a ausência de turistas, obviamente. Mas a grande maioria desses turistas – “turistas de fim-de-semana”, são visitantes e raríssimas vezes, compradores. Claro que a galeria tem, face a esses visitantes e a todos os outros, um papel – direi – propedêutico: aconselha, ajuda, sugere. Nesse sentido, a cultura vai ressentir-se com a ausência de turismo. Há ainda outra questão: o Ministério da Cultura, omisso, andou a utilizar a bandeira do Turismo para veicular a ideia de um país onde a arte e os artistas prosperam. Durante este tempo de confinamento, e mesmo sem os apoios que se impunham por parte desse Ministério, as pessoas continuaram a consumir produtos culturais (cinema, literatura, música…). Isto quer dizer que o apoio dado à cultura tem de ser constante e não somente para mostrar ao turista o quão evoluído e cosmopolita o país é. Fazer cultura com o esforço dos outros é fácil!

CB – Por fim, gostaria de saber qual a sua perspetiva global sobre o atual panorama cultural e artístico e se prevê quais serão a amplitude dos efeitos e a extensão temporal, tanto para as galerias como para os artistas?

FS – Curiosamente, estou bastante optimista em relação ao futuro. Talvez não possamos contar com o mesmo número de visitantes de outrora, mas esta situação pode originar o regresso ao circuito das galerias de arte da Rua Miguel Bombarda, de um público que andava arredado dele. Não tenhamos no entanto ilusões: teremos de pensar naquilo que queremos para a cultura, naquilo que, enquanto galeristas, queremos apresentar e representar. Teremos de ser mais pragmáticos nas nossas escolhas, mais exigentes face às panaceias propostas pelo Estado, mais críticos e mais unidos.

Constança Babo (Porto, 1992) é doutorada em Arte dos Media e Comunicação pela Universidade Lusófona. Tem como área de investigação as artes dos novos media e a curadoria. É mestre em Estudos Artísticos - Teoria e Crítica de Arte, pela Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto, e licenciada em Artes Visuais – Fotografia, pela Escola Superior Artística do Porto. Tem publicado artigos científicos e textos críticos. Foi research fellow no projeto internacional Beyond Matter, no Zentrum für Kunst und Medien Karlsruhe, e esteve como investigadora na Tallinn University, no projeto MODINA.

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