Anuário 19
O Anuário é mais do que uma exposição. É uma constelação tangível, sensorial e experiencial resultante de várias ações artísticas e criativas, objetuais e curatoriais que invadiram e conquistaram a cidade do Porto e que assim designaram a sua atividade cultural durante um ano. Consiste, efetivamente, numa importante representação da esfera da arte portuense, do que resultou da atividade dos seus artistas, interpelou os seus públicos e se inscreveu na cidade, ocupando e transformando inúmeros dos seus espaços de apresentação cultural.
O projeto vive agora o seu segundo momento, desta vez debruçando-se sobre o ano 2019 e tendo inaugurado no dia 5 de março de 2020 e, depois de ser temporariamente fechado, reabre a 2 de junho, assim permanecendo até ao próximo 19 de julho. É concebido e comissariado por Guilherme Blanc e João Ribas, cujo prestígio, tanto individual como conjunto, promete, desde logo, a qualidade e o valor do que se apresenta. Parte de ambos o voto de confiança em cinco outras figuras de relevo do contexto artístico nacional, Catarina Miranda, Eduarda Neves, Filipe Marques, Samuel Silva e Simão Bolívar.
Como poderia pressupor-se de início, a exposição concebida por estes cinco enunciados comporta e cruza diferentes pontos de vista, perspetivas e, inevitavelmente, os juízos de gosto de cada um. Também os percursos académicos, profissionais e, forçosamente, vivenciais de cada um distinguem-nos entre si e dos demais, projetando-se num conjunto particularmente amplo e híbrido de objetos, tanto quanto singular.
Porém, esta pluralidade não expressa somente os curadores mas, mais especialmente, os próprios autores das obras que se expõem. Entre estes, encontram-se nomes recorrentes como Patrícia Geraldes e Francisco Tropa, a par de outros que serão, talvez, representativos das mais recentes expressões nas artes, caso de Carlos Mensil ou de Vera Mota. Destacam-se ainda Celeste Cerqueira e Pedro Tudela, contribuindo todos para a afirmação deste encontro como particularmente dinâmico e sólido, sustentando a importância da sua descoberta.
A dinâmica expositiva, tão espacial e objetual como experiencial, é, pois, firmada pelas obras que se declaram retratos da produção artística portuense. Observam-se técnicas e expressões de caráter mais académico, como o desenho, tanto quanto a presença de matérias-primas, como a madeira em diálogo com projeções visuais e instalações invulgares, algumas das quais, no limite, podem compreender-se serem exemplares de movimentos culturais underground. Ao longo da exposição, a viagem (pois a ideia de visita não acomoda a dimensão do que se exibe) é percorrida em contacto com várias formas e imagens que emanam de múltiplas perspectivas, ópticas, universos e significados.
É ainda importante reiterar que as obras não se expõem somente enquanto tal, na medida em que, através de cada uma, evocam-se as exposições das quais fizeram parte e onde foram moldadas por outros curadores, também a relembrar. Pode, aqui, recorrer-se a Malraux e aplicar o seu conceito de museu imaginário, no qual os objetos não são somente obras-primas que existem em si mesmas. No caso do projeto Anuário, tratam-se de representações de outras exposições e contextos, museus, galerias e públicos, instalando distintas dinâmicas espácio-temporais em simultâneo.
A exposição cumpre-se no Palácio das Artes, no Largo de São Domingos, edifício histórico cuja arquitetura imponente contrasta com a contemporaneidade do que nele se apresenta, traduzindo-se num adicional desafio curatorial. Cabe à força das obras e aos modelos expositivos adoptados imporem o apagamento da natureza do espaço envolvente.
Por fim, convoca-se o Colectivo de Curadores para equacionar o resultado da exposição e tentar compreender se, por um lado, a presente heterogeneidade expositiva revela a diversidade criativa, social e ideológica dos artistas e da cidade e, ao mesmo tempo, provará um sentido de união, orientação e esforço comuns por uma cultura que represente cada um e, simultaneamente, todos nós. Com efeito, a força da comunidade em prol de uma mesma causa tem-se verificado ser fundamental e a arte é, por certo, uma das suas principais manifestações.
Coletivo de Curadores – Do nosso ponto de vista as obras em exposição são produzidas na cidade, mas não lhe pertencem. Esta exposição, como outra qualquer, apesar de funcionar como um bem comum, em nada se pode substituir à singularidade própria de cada artista. Não se trata de uma qualquer unidade ou identidade na diferença. Trata-se de facto, da identidade como diferença e a afirmação de que só existe pura diferença. A aposta na heterogeneidade, que atravessa o Anuário 19, pretende, tal como afirmamos no texto que o acompanha, exprimir um mapa psicogeográfico e uma polifonia que configura, em última instância, a arte contemporânea. Se a cidade o é, tanto melhor. É sinal que acompanha o estado do mundo.