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Entrevista: Alvaro Urbano

Ao intervir no Pavilhão dos Hexágonos, concebido por José Antonio Corrales e Ramón Vázquez Molezún, Álvaro Urbano explora as noções de sonhos e memória e reaviva as histórias espanholas na construção da sua própria paisagem onírica em El Despertar. O espaço existe numa espécie de estase, num processo simultâneo de crescimento e decadência, que se torna convoluto; o tempo é delineado e o espaço é alvo de disrupções e perturbações; as estruturas arquitetónicas são fragmentadas e impregnadas por uma névoa amarela, tornando os seus limites inexistentes num sonho interminável e intemporal.

 

Myles Francis Browne – Na minha opinião, há uma certa ironia no título El Despertar. Aquilo que experienciamos é uma espécie de paisagem onírica; esta implica que o espectador adormeça durante e dentro do espaço. Será que continuamos ainda a dormir?

Alvaro Urbano – O título refere-se à qualidade ativadora do sonho e aponta para o desempenho espacial desdobrado na exposição. Encontramos uma nova forma de contar a história do El Pabellón de los Hexágonos, construído em 1958 para a Feira Mundial de Bruxelas.

MFB – Psicologicamente, os sonhos são uma confluência entre o consciente e o subconsciente. Será que este sonho é uma forma de escapismo de um mundo onde é, de certa forma, difícil despertar, ou será que se posiciona numa espécie de visão idealista da realidade consciente?

AU – Por si só, o “mundo dos sonhos” é interessante, pois permite experimentar [as coisas] de forma diferente, sem corpo ou sem tempo. Na exposição, relaciono-me com o passado e o seu outro lado hipotético, o presente e o hipotético futuro. Como num sonho, estas três etapas fundem-se. No caso de El Despertar, quis representar o que seria uma vida paralela do Pavilhão, incluindo os seus desejos, fantasias e fracassos – na forma como um edifício poderia atuar, especular e contar-nos a sua história.

MFB – Os sonhos também podem comunicar um desejo que, de outra forma, não admitiríamos a nós próprios. Será que a instalação procura provocar algo quiçá reprimido no visitante?

AU – É curioso que use a palavra “reprimido”, que se enquadra muito bem na história de Espanha enquanto país com um percurso particularmente complexo. El Despertar, como sabe, baseia-se no Pabellón de Los Hexágonos, um edifício feito para representar Espanha na Feira Mundial de Bruxelas em 1958. Nessa altura, a Espanha estava sob a ditadura de Franco. Atualmente, o pavilhão definha como uma ruína na La Casa de Campo, em Madrid.

Por um lado, a arquitetura original do pavilhão representa a transparência e a tecnologia moderna invulgarmente sofisticada, algo distante dos valores e do tipo de arquitetura que o regime espanhol apoiava; para mim, esta “representação” foi invertida, pervertida, fictícia e inadequada; mas, ao mesmo tempo, foi muito conveniente para a imagem do país, pois o pavilhão transmitia uma “realidade” muito diferente e melhor.

Nos anos 50, a Espanha tinha uma forte comunidade intelectual, com nomes como Corrales e Vázquez Molezún, os arquitetos que edificaram o pavilhão. Ao pesquisar sobre o edifício, é possível encontrar histórias interessantes e bizarras. Por exemplo, um grupo de artistas, juntamente com os arquitetos e um curador, planeou uma exposição invulgar e fantástica no pavilhão original para a exposição de 1958. Queriam deixá-lo quase vazia, como espaço de contemplação, com um galgo preto a viver nele (chamado Felipe II), uma laranja, o capote de Manolete e a música de Manuel de Falla (um célebre compositor espanhol que não comungava as mesmas opiniões do governo). Durante a instalação, o regime de Franco descobriu e cancelou a exposição original em Bruxelas. Despediram o curador e substituíram o plano original por material mais popular, cliché e menos interessante, com danças e objetos folclóricos.

Nasci em Madrid oito anos após Franco ter deixado o poder. De alguma forma, a ditadura e a sua figura foram sempre uma espécie de fantasma na minha educação e um período da história do país do qual ainda não se recuperou totalmente. Quando era criança, lembro-me de usar as velhas pesetas com o perfil de Franco nelas cunhado. Tal como estas moedas, muitos monumentos e símbolos fascistas têm desaparecido ao longo dos anos, mas o fantasma permanece.

MFB – Isso provocou alguma coisa em si?

AU – Certamente. El Despertar é um dos processos mais complexos em que tenho estado envolvido e é uma soma de muitos dos meus interesses.

Desde o início, José Esparza Chong Cuy (o curador da exposição) e eu pensámos em criar uma experiência cinematográfica, possibilitando a atuação de um edifício ou espaço. Uma questão importante tinha a ver com transformar esta exposição numa cena infinita, uma cena que muda perpetuamente com diferentes emoções, faces e ritmos.

No meu estúdio em Berlim, trabalhei com uma equipa de arquitetos e cenógrafos da área do teatro. Na música, participei numa bela e comovente colaboração com Juan Carlos Blancas, conhecido como Coeval, compositor espanhol, cujas especialidades são field recordings e transformações de som por computador. Para a exposição, criámos uma paisagem sonora envolvente, num ambiente octofónico com várias colunas escondidas atrás das esculturas, fazendo-as vibrar e transformando-as em instrumentos. Através de um logaritmo, uma programação complexa e uma codificação informática, a música gerada na exposição está sempre a mudar com diferentes sotaques, volumes e acordes. Qual organismo vivo, esta paisagem recém concebida, feita de nevoeiro, luz, som, música e esculturas, está continuamente viva; sempre em mutação.

O convite feito pela La Casa Encendida foi uma forma de regressar “a casa”, pois esta é a minha primeira exposição individual em Espanha, Madrid, onde nasci e da qual parti há já 14 anos. No próximo ano, El Despertar terá a sua segunda parte exposta em Nova Iorque, na Storefront for Art and Architecture, numa cidade onde também vivi há uma década. De certa forma, a segunda parte do projeto é outro regresso a casa. Até lá, estamos a planear lançar um álbum em colaboração com o Coeval, com a música do El Despertar.

MFB El Despertar parece atuar dicotomicamente; estratificado algures entre sonho/noite, verdade/mentira, autenticidade/artificialidade. Oscilamos entre a realidade e a fantasia, até estas se tornarem quase indiscerníveis. Como é que isto se relaciona com o contexto político do trabalho?

AU – Existem objetos tangíveis no espaço que se referem à exposição censurada no Pavilhão de 1958. Mas também existe uma paisagem sonora parcialmente inspirada em Noches en Los Jardines de España, de Manuel de Falla. Nesta, temos várias camadas construídas a partir de diferentes fontes: sons ambientais, sons geofónicos como a água, o vento e o fogo, texturas eletrónicas e sons biofónicos previamente gravados a partir de insetos e outros artrópodes. Na exposição seria quase impossível reconhecer estas entidades; como num sonho, existem na forma de abstrações. Dentro de cada verdade existem inverdades e a história é excludente. Mas os sonhos e as histórias conseguem adentrar na vida, exsudando a sua influência e impacto.

MFB – Existe também uma noção de animação, ou quiçá de reanimação, um elemento fulcral no trabalho. O que está por detrás destes processos de reanimação?

AU – A questão da animação e do animismo está sempre presente no meu trabalho, a tal vida possível por detrás de uma escultura. Por vezes, lembro-me da minha infância – fui educado na Espanha católica, onde desde muito cedo se ensina a rezar perante símbolos e estátuas de cariz religioso. Quando era criança, acreditava que conseguia falar e ter conversas com estas esculturas. Era um mundo cheio de representações, espíritos, crenças e fantasmas.

MFB – Este tipo de intervenção serve apenas para perverter o curso natureza – uma espécie de monstro de Frankenstein, que mais valia ter entrado em estado de putrefação do que numa estagnação permanente.

AU – Estou interessado em mostrar a vida de um objeto e não em replicar algo que já existe. Quero imitar a sua vida e trazê-lo para um ambiente que tenha a capacidade de contar uma história.

Nas minhas instalações, ambientes e esculturas, existe muitas vezes um momento de deceção. São quase como pistas de uma realidade construída. Por exemplo, pontas de cigarro no chão podem ser vestígios de uma pessoa. Ou as folhas secas num canto de uma sala podem indicar uma rajada de vento. Quando estas situações ocorrem num museu, numa instituição em que certos protocolos devem ser seguidos, alteram a realidade, é uma ação subversiva e até política.

Fiz cerca de 1000 esculturas para a exposição. Poucas pessoas reparam que todos os objetos são construídos. Contudo, subconscientemente, sentem que há algo contraditório. Esse momento é muito interessante para mim. O conceito de ficção e de personagens fictícias que se infiltram na realidade está bastante presente na minha prática.

Na instalação, existem dois fatos de guaxinim colocados no chão, provindos uma colaboração anterior com Petrit Halilaj, em 2016. Os guaxinins urbanos vivem normalmente em espaços semiabandonados e sobrevivem de restos deixados pelos humanos. Ocasionalmente, ao longo da exposição, os trajes de guaxinim são usados, sendo ativados periodicamente. Em 1977, o Nippon Animation Studio, no Japão, criou Raskal the Raccoon, um enorme sucesso entre as crianças. Depois dos primeiros episódios, os pais destas crianças pensaram que era uma boa ideia importar guaxinins e tê-los como animais de estimação em casa. Longe de ser um animal de estimação que alguém pudesse domesticar, os guaxinins são selvagens e potencialmente agressivos. Os donos infelizes começaram a libertá-los na natureza, perturbando fortemente o ecossistema. É interessante ver como uma fantasia inocente pode atravessar os ecrãs, acabando por produzir um desastre ecológico na vida real.

No caso de El Despertar, fizemos até cartazes de filmes fictícios, afixando-os nas ruas de Madrid. Ao anunciarmos um filme inexistente, o objetivo passava por divulgar a ficção da exposição fora do museu, no mundo real, como um convite a uma experiência.

MFB – Aliada aos sonhos, temos a noção de memória, de recordação. A nossa própria memória é intervencionada por impressões, sensações e ficções inventadas. De que serve a memória quando esta é adulterada por estas ficções?

AU – As memórias são conhecidas por ficarem enevoadas e são normalmente adulteradas por mentiras; são frágeis. Com El Despertar, quis representar esta nebulosidade nos materiais que usei nas esculturas. O pavilhão é uma referência importante na arquitetura espanhola moderna. É um edifício único, uma raridade até. Um edifício que talvez não tenha sido compreendido na totalidade pela sua história negra. Tem múltiplas camadas interessantes, rumores e dramaturgos. Para mim, contar histórias é apenas mais uma faceta da memória, permitindo a formação de sonhos; uma expansão da perspetiva e da compreensão.

El Despertar pode ser visitada até 1 de junho na La Casa Encendida, Madrid.

Myles Francis é jornalista e escritor de arte. Nascido em Londres, vive agora em Lisboa. Já trabalhou para publicações como Nicotine, TANK e Vogue Portugal. Atualmente escreve para a Umbigo Magazine.

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