De volta aos anos 1990 com Matt Keegan
No início de março, a galeria Pedro Cera abriu uma exposição individual com as mais recentes obras de Matt Keegan, intitulada Recycle. Keegan cresceu nos anos 80 e 90, nos Estados Unidos, e explora o impacto sociopolítico e dos meios de comunicação massificados dessas décadas no seu país. Recycle apresenta novos trabalhos em vídeo, fotografia e colagem feitos a partir de material já existente produzido em massa, e um arquivo pessoal de imagens da sua mãe, que esta havia preparado para as suas aulas de inglês. Com uma linguagem publicitária que serve de base às suas obras, o artista experimenta a descontextualização e inversão do imaginário, num contraponto à sociedade capitalista.
Dasha Birukova – Lisboa é uma cidade marcada pela imigração, especialmente nos últimos anos. A sua exposição individual na Galeria Pedro Cera explora estas questões? Como construiu esta exposição e trabalhou com o contexto português em particular?
Matt Keegan – Fiz os meus quatro vídeos para uma exposição individual que tive no ano passado, na Galeria Altman Siegel, em São Francisco. Quando a minha mãe começou a ensinar inglês como segunda língua (ESL), trabalhou com adolescentes e adultos no ensino público, predominantemente da América Central e do México. É a mesma população que Trump criminalizou por tentar entrar nos EUA. Embora trabalhe com os flashcards da ESL da minha mãe desde 2010, a resposta atual a essas populações imigrantes adquiriu uma nova relevância. Não tinha Portugal em mente ao fazer este trabalho, mas, como a sua pergunta refere, há uma crise global relacionada com os imigrantes deslocados e refugiados. Independentemente de estarmos nos EUA ou em Portugal, o inglês é a língua franca para o comércio (artístico ou não), por isso o conteúdo ESL tem relevância. Trabalho também com imagens comerciais feitas nos EUA, e essas fotos de arquivo já circularam provavelmente no estrangeiro, e são legítimas num contexto internacional.
DB – Pode contar-nos mais sobre as histórias por trás desses vídeos? E porque decidiu animar as imagens estáticas?
MK – Escolhi quatro flashcards para animar a partir de um conjunto de 400 cartas com frente e verso. Com base no tipo de imagens que a minha mãe selecionou, tentei abordar o que me pareceu serem categorias da coleção dela. Uma natureza morta: com 7.5 Litros de Leite. Publicidade em catálogo: Preparado para trabalhar. Representações da diversidade étnica/racial: Companheiros de Viagem. E o auto/biográfico: Licenciado. O processo de animação destas quatro cartas foi bastante intuitivo – obedeci àquilo que imagem exigia. Tentei ativar o que já estava representado na imagem estática, com exceção da ‘Licenciado’. Para este vídeo, escrevi o breve roteiro baseado num intercâmbio real que tive com minha avó materna, quando me formei na faculdade.
Reanimar uma imagem estática é uma reflexão sobre o período temporal que contém essa mesma imagem, conferindo-lhe vida através de um olhar contemporâneo. Por exemplo, o vídeo do metro foi capa da revista New York Time, e tive interesse na linguagem que usada para enquadrar diferentes populações, e o quão extremamente datada parece nos dias de hoje. É interessante que estivesse datada na altura em que começavam a brotar as políticas de identidade. Os meados dos anos noventa estão agora a começar a ser debatidos. Cada vídeo refere essa estética particular. Ao usar as imagens de arquivo, tão familiares no contexto norte-americano, deixaram de ser invisíveis, sem nunca se apresentaram claramente. A minha ideia era trabalhar com o processo que estas conseguissem evocar.
DB – A cultura visual massificada dos anos 90 é capaz de evocar sentimentos ou uma aura nostálgica – contudo, a sua forma de alienar essa visualidade cria uma dissonância que se situa algures entre o sarcasmo e o sentimento. Qual é a sua visão sobre a estética dos seus vídeos? E como é que os anos 90 influenciaram a sua prática artística?
MK – Os flashcards foram feitos principalmente entre 1987/88 e o final dos anos 90. São uma cápsula do tempo dos desejos e ambições da classe média dos anos 90.
Estou interessado neste período, pois, do fim da presidência Reagan até aos dois mandatos de Bill Clinton, a classe média encolheu significativamente nos EUA. Embora referida frequentemente pelos políticos, essa demografia não existe em números (ou na viabilidade financeira) relevantes, tal como a minha mãe havia lecionado no curso de ESL.
Estou mais interessado no humor do que no sarcasmo ao refazer essas imagens comercialmente lubrificadas. Todos os flashcards que selecionei têm imagens fixas amadurecidas com diferentes registos absurdistas. Espero melhorar esse aspeto e seguir uma direção engraçada, desconfortável ou inquietante. O ideal é que a resposta seja mais do que um risinho.
Os anos 90 têm uma influência significativa na minha prática artística e em mim como pessoa. Fui para a faculdade em 1994. Fiz parte dos primeiros anos dos estudos culturais e de género. Conheci o trabalho de artistas como Fred Wilson, coletivos como o Group Material, e percebi que a arte e a cultura mais abrangentes, o enquadramento museológico, etc., estavam disponíveis para mim enquanto artista.
DB – Falemos das colagens: o que o atrai nesta técnica? Que camada crítica poderíamos encontrar na coleção de cupões de desconto?
MK – Comecei a fazer colagens baseadas em fotos ainda nos tempos da minha pós-graduação e continuo até hoje. As minhas colagens anteriores consistiam em cortar e colar fotografias do meu arquivo pessoal. Locais, pessoas e momentos uniram-se em arranjos formais. Tendo em conta a forma como a minha mãe fazia os seus flashcards com material impresso que chegava à nossa casa (através de catálogos gratuitos), tenho interesse no marcador temporal dos preços. Estão próximos do momento atual, pois os vários itens eram mais baratos nos anos 90 do que são hoje. Vejo também uma beleza particular na forma como a publicidade nos supermercados era feita e com os cupões eram fotografados. Nas minhas colagens, tentei criar um campo para apresentar estes marcadores.
DB – A sua série Clockwise deu corpo à sua abordagem típica, que brinca com os materiais e as formas. Poderia falar-nos mais sobre o processo de cortar as capas das revistas noticiais para transformá-las em objetos?
MK – Aqueles três números da revista Time (todos de 1996) tinham anúncios a leite que a minha mãe cortou para fazer o seu flashcard. Achei interessante as três capas terem relevância no momento atual: A Rússia em ano eleitoral, assim como a própria eleição de Ieltsin (há também uma história de capa da Time sobre a intervenção americana na eleição de Ieltsin), com as mulheres a serem uma importante demografia para os candidatos presidenciais americanos (Trump conseguiu assegurar uma grande percentagem de eleitoras brancas em 2016), e o cientista Dr. Ho teve um impacto significativo com a sua investigação durante a crise da SIDA.
Os trabalhos de Clockwork baseiam-se no meu interesse pela transição da forma bidimensional para a tridimensional. É como um padrão para um vestido ou camisola, compreendendo que o padrão liso poderia uma peça de vestuário dimensional. É uma tradução tátil muito específica, onde as ideias são transportadas para o material.
DB – Sente uma diferença entre o mundo artístico norte-americano e europeu? Como é ser um artista americano hoje em dia?
MK – Nunca vivi na Europa e, embora tenha lá exposto, não o fiz de forma exaustiva. Os EUA são muito grandes. Posso falar enquanto artista que vive em Brooklyn, Nova Iorque. Não é fácil. Tenho a sorte de ensinar, de proporcionar um escape para um tipo diferente de diálogo permanente. Mas não sei o que significa a verdadeira América. Especialmente agora, quando a maioria dos republicanos está feliz com Trump, 40% dos EUA também estão felizes com ele. Ao viver no cosmopolitismo da costa, racial e sexualmente diversificado, não tenho qualquer relação com a América como um todo. Acho que estou interessado nos estereótipos gerais sobre os EUA, pois é impossível fugir deles. Especialmente por ter crescido na cidade durante os anos 80, onde os meios de comunicação que eu consumia, por exemplo, transmitiam o projeto de democracia. Ouvi sempre dizer que “a Rússia é um inimigo”, ou “a democracia vencerá”. Era tão banal quanto o Rocky ou o Rambo. É simplesmente impossível retirar isso da minha identidade. Poderia eu ser outra coisa que não um artista americano? Mas nunca me senti tão confuso com o representante escolhido pela população. É um momento estranho para todos, especialmente agora!