Resposta Aberta: Jay Scheib
Resposta Aberta é uma série especial de entrevistas com artistas, curadores, escritores, compositores, mediadores e “fazedores de espaços” internacionais. Atendendo aos temas que rapidamente emergiram como consequência da pandemia de Covid-19, oferecemos, aqui, uma perspetiva diferenciada e honesta de compreensão. Semanalmente, várias serão as portas abertas à vida dos colaboradores e às suas experiências de prazer, produtividade, metafísica e mudanças de paradigmas. Idealmente estas conversas poderão servir de caixas postais e conduzir a uma maior empatia, unidade e cocriação. Resposta Aberta vai ao encontro da necessidade de tecer a autonomia de uma rede de comunicações consciente, em tempos de extrema perplexidade.
Jay Scheib (Diretor, Designer, Operador XR) é conhecido internacionalmente pelos trabalhos que desafiam géneros e pelo caráter físico e integrador de novas (e já usadas) tecnologias em performances ao vivo. Os seus trabalhos mais recentes incluem Bat Out of Hell de Kim Steinman, no New York City Center e no Coliseum e no Dominion, do West End de Londres. Scheib criou também recentemente a abertura em palco da ópera Mamzer/Bastard, de Na’ama Zisser, com a Royal Opera House, no Hackney Empire Theatre em Londres. Outras peças incluem a nova ópera em colaboração com Keeril Makan, baseada no icónico filme de Ingmar Bergman, Persona, que foi produzido por Beth Morrison Projects, no National Sawdust em Nova York, seguido de performances no Isabella Stuart Gardner Museum, em Boston e na Los Angeles Opera na RedCat, em LA. Outra peça da sua autoria é a aclamada produção de Surrogate Cities, de Heiner Goebbel, misturada com a peça Götterdämmerung, de Richard Wagner, que recebeu importantes críticas na Opernhaus Wuppertal, Alemanha, e na New York City Opera; e a ópera de Thomas Adès, Powder her Face, na BAM em Brooklyn. Considerado “Melhor Encenador do New York Theatre” pela Time Out New York em 2009, e “um dos 25 artistas de teatro a redefinirem os próximos 25 anos do teatro americano”, pela American Theatre Magazine, Sheib recebeu também o MIT Edgerton Award, o The Richard Sherwood Award, uma bolsa da National Endowment para as Artes/bolsa da TCG para Diretores, a prestigiante bolsa da Guggenheim Fellowship, e um OBIE Award para Melhor Diretor, depois da sua versão adaptada de Fassbinder, World of Wires. Scheib leciona atualmente na Theatre Arts no Massachusetts Institute of Technology, onde faz a curadoria do MIT Performing Series em colaboração com o Center for Art Science and Technology.
Josseline Black – Nesta fase de isolamento forçado, como articulas a tua resposta num discurso público? Qual é o teu papel nesta conversa mais ampla?
Jay Scheib – Dou por mim a olhar para uma crise de imaginação. Temos tanto para inventar neste frenesim. Por isso, divido o meu tempo na defesa de que a política tem de ser posta de lado ou eclipsada e que os silos disciplinares que nos prendem sejam corroídos em favor da colaboração. Uma colaboração sem fronteiras. Assim, o meu papel, acredito, é o de impulsionar o processo, rumo a um mundo no qual a colaboração seja bem-sucedida, sem espaço para litígios – nem para a luta pelo poder, riqueza, vantagem comercial, propriedade intelectual, etc. É um bom momento para defender a imaginação em escala e, se alguma vez existiu um momento interdisciplinar – é este – o sonho de Artaud materializado como um tiro de canhão. O mundano, o radical, a superescala, o superlocal e o superglobal são todos iguais neste caldeirão. A mudança está na boca de todos. Mas beijar estranhos continua definitivamente proibido.
JB – A tua prática artística mudou com o isolamento?
JS – Parece que irá mudar. Ainda não é claro se o teatro, a ópera e outras grandes expressões artísticas de índole pública sobreviverão! Serão tempos conturbados até a poeira assentar. Sinto-me ainda ligeiramente tonto. Estávamos a duas semanas da primeira paragem de uma digressão mundial de dois anos da Bat Out of Hell. Estava prevista que começasse em Atlantic City, New Jersey, a 27 de março. A produção técnica estava já curso em Nova Iorque e os ensaios estavam prestes a terminar em Londres. Dois dias antes de o elenco e a equipa criativa voarem para Nova Iorque, para começarem os ensaios da orquestra de palco, ligaram-nos a adiar. E, assim, aquele pequeno e distópico musical de cinema ao vivo, sobre rebeldes motociclistas a sovar os próprios mamilos, chegou abruptamente ao fim. Os canhões de confettis, as paredes de vídeo, as câmaras, os fatos, as motos – foi tudo imobilizado. Mas, mais importante, cerca de oitenta artistas ficaram subitamente sem trabalho e muitos sem sítio para viver. Abrigo? Onde? Seja como for, a Bat Out of Hell deveria estar neste momento a tocar em arenas na Austrália, Nova Zelândia e, por fim, em todas as cidades do Reino Unido, seguindo-se datas na Coreia do Sul, Las Vegas e mais datas nos Estados Unidos. É bastante surreal.
Ironicamente, o meu próximo grande projeto possui uma importante vertente XR. Terei um sítio para submergir num futuro próximo? Pelo menos, por agora, a fase de investigação para a Parsifal não está felizmente muito afetada – estou a usar um laser scan da Bayreuth Festspielhaus e a trabalhar na mitologia do Graal a partir do interior de um headset.
JB – Como é que a tua capacidade de produzir foi afetada pela pandemia?
JS – Do ponto de vista prático, acho que a maior distração neste momento é ter poucas distrações. Talvez pareça lisonjeiro. Costumava forçar-me a ir até a um café e a ler o jornal para desanuviar a cabeça/começar do zero. Era uma pausa agradável. Agora é o oposto. Por isso, tenho estado mergulhado na ópera, na ficção científica e a fazer o meu melhor para ignorar os números da COVID-19.
JB – Atualmente, qual é a tua abordagem relativamente à colaboração?
JS – Neste momento, totalmente em rede. Mas a minha abordagem mudará à medida que procuro uma ligação mais forte com o superlocal. Atualmente, tal como muitos de nós, contribuo sobretudo para as ecologias globais e é tempo de começar talvez a encarar isso como uma falha. A propagação da doença prova que as pessoas só sabem viajar, sem parar a porra dum minuto – e eu não sou exceção. Há anos que não estou em casa há tanto tempo.
JB – Como definirias o momento presente, do ponto de vista metafísico/literal/simbólico?
JS – Bom, é o momento que nos está a definir.
JB – Achas que existe um potencial de apoio renovado para a produção cultural, apesar de as macro e as microeconomias estarem em rápida reestruturação?
JS – Sim, mas lembro-me do grande poeta e dramaturgo da Alemanha de Leste, Heiner Müller, que disse: “Não sou Dealer de Droga – nem de Esperança”. Quer ser ambos. É um bom momento para sermos radicalmente otimistas. Já mencionei que o vice-presidente dos Estados Unidos acabou de dizer ao povo americano para passar mais tempo de joelhos e menos tempo na internet!? Acho que ele estava a pensar em rezar, mas talvez quisesse mesmo dizer chupar pilas ou lamber ratas como forma de unir a população. Imaginem toda a gente vir-se ao mesmo tempo. O júri saiu à rua – a lógica desafia a interpretação, no tempo da peste que o grande Camus referiu. Estou otimista, mas também atento ao indelicado facto de haver ainda por aí idiotas que veriam a legislação sobre “serviços essenciais” como uma excelente oportunidade para lixar a Planned Parenthood. Pergunto-me como é que eles conseguiriam lembrar-se de lixar a Planned Parenthood, ao mesmo tempo que açambarcam papel higiénico? Deixando momentaneamente de lado a minha descrença, acho que alguns destes tipos terão também a oportunidade de deixar as nossas instituições culturais em escombros. Quando se erguerem novamente, a minha esperança é que haja artistas suficientes à mesa. Defendo isso com toda a veemência.
JB – E.M Cioran escreve: “nas grandes perplexidades, tente viver como a história foi feita e reagir como um monstro repleto de serenidade”. Como respondes a esta proposta?
JS – Em dias como este dou, por mim à procura do meu nariz de palhaço preferido, na esperança de encontrar algo que também seja verdade. “Ficas ridículo quando danças. Ficas ridículo quando não danças”. Então, mais vale dançares”, respondeu Gertrude Stein em Três Vidas. A minha verdadeira resposta à proposta de Cioran foi desaparecer durante a maior parte do dia, para ler os seus horríveis, horríveis, horrivelmente belos aforismos. Há consolo na serenidade dos monstros.
JB – Como é que este tempo está a influenciar a tua perceção de alteridade no geral?
JS – Lembro-me de trabalhar em Hong Kong após o SARS. Os pequenos restaurantes de bairro serviam os talheres com uma tigela ao lado de um pote de água a ferver, para que os clientes pudessem esterilizar os objetos – a alteridade já estava inculcada na simples perceção de que a impureza existia a priori. Embora esta tradição precedesse o SARS, foi-me dito que esse hábito se tornou mais comum. Uma tosse num autocarro significava o impensável. Recordo-me desse tempo. A alteridade, hoje, na era assintomática ou pré-sintomática, não é assim tão diferente. Agora, acho que compreendo a experiência dos meus colaboradores em Hong Kong com maior profundidade do que antes. Na rua, no mercado, em todo o lado, todos se tornam, a priori, um estranho, alguém sinistro, suspeito, duvidosamente impuro, um corpo viral que se desloca pelo espaço.
JB – Como é que a tua utilização da tecnologia e do virtual está a fazer evoluir o paradigma da tua produção?
JS – Durante algum tempo, pareceu-me que o interior do meu corpo de trabalho estava preparado para abraçar o embate entre realidade e ficção – e, após o 11 de Setembro, parecia ser obrigatório tornar esse embate uma realidade, para lhe dar significado. Confrontar a realidade com a ficção e a ficção com a realidade tem sido mim um pilar organizador. Todas as ordens prévias tiveram de cair – afinal, qualquer métrica reconhecível sobre a verdade tinha há muito tempo sido derrotada no pântano do poder da relatividade. A integração de tecnologias novas e usadas na performance ao vivo proporcionou um meio de aceleração e virtualidade, que se traduziu numa pequena promessa de velocidade de fuga. Temos de ver como será no próximo ano.
Como Professor de Música e Artes Teatrais no MIT, temos uma extraordinária oportunidade com o ensino à distância. Nada me deixa mais feliz do que encontrar maneiras de ensinar estas formas de arte muito físicas num ambiente virtual. Mas não é um desafio bem-vindo para todos, claro, e há grandes considerações no que diz respeito ao acesso. Nem toda a gente tem um computador portátil, um smartphone, uma câmara fotográfica ou um dispositivo XR. Nem uma ligação wireless fiável. Há muito trabalho a fazer. Não queres juntar-te à minha turma para a sessão?
JB – Qual é a tua posição sobre a relação entre catástrofe e solidariedade?
JS – De vez em quando, se tivermos sorte, a nossa prática leva-nos a algo que é maior do que nós. De alguma forma, em qualquer prática artística, a catástrofe é tudo. Nas mitologias do Graal, é o tolo inocente, o idiota, o estúpido solitário que finalmente curará a ferida – porque só um verdadeiro imbecil é que colocaria espontaneamente a questão certa. Como estou a trabalhar na Parsifal, penso muito sobre isto. É, ao mesmo tempo, o caminho para entrar e sair do terreno baldio. No caso dos cavaleiros do Graal, andavam todos tão ocupados a servir o Graal que ninguém tinha pensado em perguntar “…a quem é que o Graal serve?”
A crise da imaginação encontra o seu análogo numa crise de liderança. Continuarei a defender uma maior colaboração, para além das nossas disciplinas em silos. Temos de fazer perguntas melhores. Adoraria desestabilizar suficientemente o discurso para que algum santo idiota pudesse acidentalmente colocar a pergunta certa – entre a catástrofe e a solidariedade, está a sorte. A minha posição é a de preparar as condições para ter sorte.
JB – Qual é agora a tua utopia?
JS – Para mim, conversas como esta são praticamente a única utopia.