Salomé Lamas online na Kubikgallery
O início da curta-metragem Coup de Grace circunscreve-nos à posição na qual, atualmente, nos encontramos: estáticos, impossibilitados de agir e intervir, somos subordinados, novamente, à condição de espectador passivo da qual já nos havíamos libertado. Resta-nos, somente, consentir e observar o que se desenrola perante nós.
O filme, da autoria de Salomé Lamas (1987, Lisboa), encontra-se, agora, passível de ser assistido online, depois de ter sido projetado em tela na Kubikgallery, no Porto, desde o passado dia 22 de fevereiro. A revelação e a existência deste medium, o vídeo, dependem sempre de um meio de projeção. É esse tipo de instrumento tecnológico que se posiciona como mediador entre o público e o filme, tal como a televisão, mass media de irradiação da atualidade noticiosa, medeia um polo programador e a audiência. Em ambos os casos, na criação artística e na construção jornalística, o que se vê, a partir de que ponto de vista e durante quanto tempo, são previamente definidos. Igualmente as narrativas apresentadas avançam num sentido e numa direção desconhecidos. Resta-nos esperar.
O início da obra de Salomé Lamas, que tão lenta e serenamente se introduz, representa um exemplo da ocupação da Terra por parte do homem, por via da transformação do espaço, dos ambientes de ordem natural e, consequentemente, dos ecossistemas. Ao mesmo tempo, questiona a própria condição humana, problemática esta recorrentemente convocada e explorada pela artista.
Neste filme, após algum tempo de contemplação, quando o olhar já se familiariza com o panorama que é imposto, introduz-se um novo elemento cuja presença se sobrepõe ao demais. Uma figura masculina situa-se, tal como o espectador, no lugar de voyeur, papel assumido pelo ator Miguel Borges, que assim reclama o protagonismo da cena. Com ele e com a atriz Clara Jost, que interpreta a filha, começa uma viagem. Esta última, sem se definir por uma narrativa plenamente estruturada com começo, meio e fim, assenta numa história base que se debruça sobre perda, sobrevivência e amor.
A ação define-se por uma dinâmica inesperada, inusitada e surrealista, materializada em cenários com forte qualidade estética. Do mesmo modo se pode anunciar Ubi Stunt II, uma outra curta-metragem que se segue a um primeiro momento e que antecede um terceiro e último. Tal como em Coup de Grace, este vídeo é pautado por uma ligação forte com o campo visual, agora uma paisagem, e o personagem, neste caso um só, interpretado pelo artista e performer Christoph Both-Asmus, cuja colaboração com Lamas tem vindo a repetir-se nos últimos anos.
Instala-se um quadro particularmente magnético que representa a vida, floral e colorida, mas também a morte, na sua quietude e plenitude. A acompanhar tal profundidade tão formal e visual quanto conceptual, convocam-se várias questões da atualidade através de um diálogo discorrido pelas vozes da artista e do protagonista. Desta vez, também o próprio personagem se detém em suspenso, numa espécie de tempo interrompido que somente revela a sua passagem pela luz que o acompanha, numa suave transição entre o crepúsculo e o cair definitivo da penumbra. Uma certa tensão transfere-se da cena para o espectador enquanto o ator permanece, recorrendo às palavras do próprio, “persistente entre a água e o fogo”.
Os dois filmes revelam como a obra de Salomé Lamas tem a sua própria temporalidade, não se subjugando à acelerada velocidade contemporânea. Também em ambas as peças as imagens traduzem-se em emoções e sentidos fortes que se inscrevem no espectador e, eventualmente, suscitam-lhe introspeções várias. Com efeito, o que se experiencia a nível individual decorre das personagens, até porque é, precisamente, a partir do outro que nos pensamos a nós mesmos.
Destaque-se, ainda, os planos, enquadramentos e perspetivas das filmagens, projetados e concretizados com orientação e rigor singulares. Tal mestria técnica é de enaltecer, principalmente porque se encontra em todo o trabalho da artista. Aliás, mesmo considerando que Salomé Lamas apresenta sempre algo de novo, verifica-se como as suas várias histórias, imagens e discursos relacionam-se e cruzam-se no que se solidifica e afirma como uma linha expressiva absolutamente própria.
São justamente estas singularidades que a afirmam enquanto uma das artistas contemporâneas portuguesas com melhor tacto e particular olhar por trás da câmara, sendo ainda meritória a sua prática em outros domínios das artes visuais. Por certo, Salomé Lamas destaca-se em contexto nacional, mas a sua criação projeta-se numa amplitude além fronteiras.
A sua mais recente exposição, Parafacts, inaugurada na Kubikgallery no dia 22 de fevereiro e comissariada por Sérgio Mah, é definida pelas obras aqui referidas, Coup de Grace (2017) e Ubi Stunt II (2018). As duas encontram-se passíveis de visualizar na plataforma Vimeo, cujos links e respectivas passwords devem ser requeridos através do mail info@kubikgallery.com. Convida-se, ainda, o público para uma visita guiada on-line à exposição, realizada pela própria artista, no canal de Youtube da galeria (vídeo no final do artigo).
Relativamente ao espaço físico expositivo, expõem-se, em diálogo com os dois vídeos, uma gravura e uma série de fotografias, Self Portrait (2018) e Dream the World (2017), respetivamente. Também a acompanhar a exposição da artista acrescenta-se uma peça de António Olaio, passível de observar do exterior, situando-se na montra Kubikulo[1].
Sobre Salomé Lamas, os trabalhos contemplados neste último projeto expositivo são visualmente marcantes e profundamente relacionais com o espectador, resultado de uma capacidade transdisciplinar que interseta práticas, técnicas, materialidades e expressões, mostrando-se relevante a também distintos tempos, espaços e contextos. Tais qualidades são transversais a toda a obra da artista, assim assinalando, uma vez mais, o seu valor.
[1] Porto, Rua da Restauração, nº6.