Claridade
“As horas que contêm a forma
decorreram na casa do sonho.”
Walter Benjamin (in Rua de Sentido Único)
Em 2019, Leonor Hipólito realizou duas exposições em espaços da Sá da Costa, respectivamente na galeria da livraria, onde mostrou o projecto Que permanecendo sem ser, será, integrado na exposição que Teresa Milheiro ali apresentou durante o mês de Maio – intitulada O Poder da Fragilidade – e em Dezembro interveio na sala frontal do Espaço Camões da mesma instituição lisboeta com uma mostra individual de desenho e escultura, intitulada Duet(l)o, repartida em dois momentos consecutivos.
Se na primeira intervenção, os desenhos e as esculturas da artista assumiam-se como um panegírico à vida, um poema visual laudatório à energia criadora, plena e transformadora – “abrindo janelas de vento, despindo fantasmas de ontem” – e lançavam, simultaneamente, pontes de diálogo com os objectos em metal cromado e vidro que Teresa Milheiro então expunha – cortantes, refinados e cruéis -, em Duet(l)o, Leonor Hipólito ensaiou uma representação pessoal e inefável do Desejo, através de obras que na sua inter-relação recíproca exprimiam este “sentimento que nos move, por vezes dominando; que nos vitaliza, ou então definha ou, mesmo, aniquila. Sempre transformador, é movimento, acção, projecção, subtração e adição ao mesmo tempo. Molda forma, corpo, rosto(…), recria-os.”
Para além da proximidade evidente entre os temas das duas exposições – potência criadora e desejo, ambos impulsos construtivos e/ou destrutivos que actuam no âmbito da Vontade e cujos efeitos da sua acção ecoam no mundo manifestado -, também no plano formal e, até, na concepção geral dos projectos encontramos afinidades notórias, desde logo na relação indissociável que uma e outra revelam entre as imagens/objectos expostos e os textos poéticos que as acompanham, não como suportes explicativos ou ilustrativos, mas como um magma borbulhante de inquietações, um horizonte outro que lhes confere novas possibilidades de compreensão e vice-versa – “Silenciosa/ desperta no alvorecer de cada sopro(…), descobre-se nos pensamentos revoltos.//Caminha sem remorso(…) sobre folhas carcomidas por seres que mastigam, remoem, engolem leituras.// Eterna, silenciosa. Ostenta novo traje”, escreveu a artista no texto que acompanhou a exposição Que permanecendo sem ser, será, referindo-se, por ouro lado, em Duet(l)o – Parte I às palavras que “nunca poderão definir este encontro, lançado entre forças tão revoltas (…) forças insinuantes, inelutáveis, tal qual o desejo que nunca se apaga enquanto vivo” e, finalmente, sobre Duet(l)o – Parte II, escrevendo que “com o pôr do sol a terra arrefece e nas dobras do tempo – na sombra da consciência – os sonhos reorganizam a memória.”
O sentido para que apontam estes textos poéticos não define, aparentemente, um fio condutor coerente com as imagens que lhes correspondem e essa descontinuidade deriva, porventura, de eles serem o verso e o reverso de uma realidade subliminar que nos obriga a indagar sobre onde radica a origem destas imagens e de onde provém a sua intangível beleza e leveza quase imaterial.
Em Que permanecendo sem ser, será a artista apresentou dois desenhos sobre papel colocados sobre o soalho de madeira e três esculturas de parede em metal e tecido pintado. As linhas de cor ténue dos desenhos progridem sobre as folhas brancas como radículas, vasos sanguíneos, nervuras, entrelaçando-se, por vezes, em linhas desenhadas a golpes no papel. Por sua vez, as esculturas de parede, em metal, espraiavam-se pela alvura das paredes como raízes aéreas sorvendo a humidade do ar. Em alguns dos seus braços metálicos pendiam tiras finas de tecido azul e vermelho, esvoaçando delicadamente.
No primeiro “andamento” de Duet(l)o, a artista expôs quatro obras: um desenho em grafite e lápis de cor, um bastão em latão e uma escultura de parede em metal emolduravam a quarta peça montada no centro da sala; uma escultura(?!), uma ideia visual(?!), uma obra compósita, um ringue com duas figuras humanas penduradas no seu interior – um esqueleto em metal e um corpo humano envergando uma roupagem cor da pele. Idêntica figura repousava, deitada numa vitrine pousada no chão, no segundo acto de Duet(l)o. Acompanhavam-na um Mobile em latão, suspenso no tecto, no qual estavam pendurados desenhos em grafite e lápis de cor, e uma moldura desconstruída. O corpo humano, a pele, o tacto, as qualidades sensoriais ocupavam o centro nevrálgico desta encenação plástica que se desdobrava sobre a proeminente claridade do espaço de uma forma minimalista e, por vezes, até incorpórea, evidenciando a “transparência” das obras expostas – “No mundo das formas puras, a transparência é completa, transparência que é um efeito da transfiguração da luz e da equação entre alteridade e identidade: lá, cada um é como um olho, cada um se conhece sem recurso à palavra”, escreveu Maria Filomena Molder, em O Pensamento da Forma: Consentimento e Louvor do Caminho Intermédio.
O fio condutor das duas exposições de Leonor Hipólito foi o desenho e, sobretudo, a linha; a linha inscrevendo-se no vazio vibrante de estremecimento e luz; a linha metamorfoseando-se em fio, veia, nervura, radicula, raiz, novelo; a linha configurando forma, desenho, escultura, instalação – qual Fio de Ariadne penetrando nos labirintos do tempo, assaltados por encontros com “forças tão revoltas(…) forças insinuantes, inelutáveis, tal qual o desejo”, como os descreveu a artista.
Sobre este confronto entre impulsos contraditórios de forças revoltosas escreveu Nietzsche em O Nascimento da Tragédia, situando-o sob a égide dúplice de Apolo e Dioniso, afirmando que ambos “os impulsos, tão distintos, caminham lado a lado, na maioria dos casos em divergência aberta um com o outro e provocando-se para criar novos nascimentos cada vez mais vigorosos, a fim de perpetuar a luta daquela oposição que a palavra comum ‘arte’ só aparentemente supera; até que, finalmente, através de um miraculoso acto metafísico da ‘vontade’ (…), eles surgem acasalados e, neste acasalamento, acabam por gerar a obra de arte tão dionisíaca como apolínea. (…) comecemos por pensá-los como sendo os mundos artísticos separados do sonho e do êxtase.” – Apolo, deus das forças plásticas e, simultaneamente, o deus vidente que, de acordo com a sua raiz, é “o ser que brilha”, a divindade da luz que domina também a bela aparência do mundo interior da fantasia e Dioniso, imoderado, destrutivo, intempestivo, histriónico, representado pela figura do sátiro na tragédia grega, síntese de deus e bode.
Em A forma como problema: as nuvens e o vaso sagrado, Maria Filomena Molder aborda a mesma questão, referindo-se ao filósofo alemão, dizendo que “no excesso da força vital reconheceu Nietzsche o deus Dioniso, na configuração da forma, o deus Apolo”, acrescentando que para os gregos teria de ser evidente que “o amor à forma, enquanto constituição de uma figura sustentada por um principio interno de perfeição e de beleza, engendra-se no coração de um combate nunca levado ao seu termo, não contra o caos, mas como resposta ao caos, um prolongamento projectivo da compreensão que surpreende a inseparabilidade das forças destrutivas e criativas da natureza, da vida.”
É deste conflito insolúvel que Leonor Hipólito nos fala através das suas obras e dos textos que as acompanham; desta imponderabilidade endémica que nos faz baloiçar sem descanso entre os polos opostos da criação e da destruição, da forma e do caos, pois “se a forma se atreve a anular as forças do caos, não é menos evidente que as forças, insubmissas, retornam. Sempre que acreditamos poder anular o caos, operando a sua superação definitiva, ficamos presos àquilo a que poderemos chamar uma forma morta, isto é, aquela que se petrifica numa falsa configuração” (idem, M.F.Molder, p.152).
O autor não escreve ao abrigo do Novo Acordo Ortográfico.