Com a mão cheia de pó, de Rita Gaspar Vieira
A arte opera dentro de um continuum. Não é apenas o espaço que entra na equação; não é apenas a tela que se preenche, o papel que se risca, o bloco que se esculpe entre a construção e a desconstrução. O tempo é igualmente fundamental; é o registo de uma passagem, de um gesto, de uma vida que acontece e se grava e sedimenta nas coisas que ocupam o espaço. O tempo é a camada invisível que a arte revela e a história de um lugar é o desenho do tempo tornado claro.
O levantamento de um espaço, no jargão arquitetónico, faz a tradução do edificado para o papel, com recurso ao desenho e à geometria. As medidas são registadas num esquiço rápido e linear e as idiossincrasias anotadas: elementos peculiares, restos decorativos, pormenores construtivos que podem ser mantidos – tudo com as devidas proporções igualmente assinaladas. É um desenho funcional, uma etapa intermédia de um longo processo; é prático, lógico, científico, privilegiando o espaço e tudo o que é palpável e tangível.
Mas um espaço não é necessariamente um lugar. O lugar tem identidade, tem uma atmosfera, tem o legado do tempo – a tal camada invisível -, o pó acumulado das horas e dos dias passados. O lugar, ao contrário do espaço abstrato, tem uma aura e uma vivência; tem um passado e uma história humana
Formada em desenho, Rita Gaspar Vieira usa a desconstrução do processo da gravura para fazer o levantamento de lugares. São frequentemente lugares habitados, familiares. O atelier é a sua casa e, por conseguinte, lugar de experimentação. Do jardim de casa recolhe materiais vegetais para as obras; o chão serve de suporte para nele se verter a pasta de algodão; a mesa de trabalho é também gravada nessa pasta que seca para receber as manchas de sujidade, de gordura e os veios da própria madeira.
Em Com a mão cheia de pó verifica-se a mesma proficiência na desconstrução da gravura, mas desta vez é na Fábrica de Lápis da Viarco – ao abrigo de uma residência – que a artista opera nesse eterno continuum espaço-tempo. As folhas de papel de algodão repousam em lápis de grafite, suspensas no tempo; as texturas das superfícies de trabalho ressaltam na gradação antracite da grafite sobre a brancura do papel; as mesas de madeira são cobertas de grafite para ganharem o brilho baço que lhe é característico. Não é tão-só o espaço que é levantado, registado, gravado – é a ocupação do mesmo que é desocultada, a labuta diária dos operários, a técnica e o saber fazer; é a perseverança de uma indústria que resiste e persiste; é a película da história colada nas fibras do algodão e os gestos capturados – os múltiplos gestos da artista e dos espetros do tempo. Rita Gaspar Vieira espia o tempo simultaneamente dentro e fora dele; habita o espaço e funde-se nele.
As obras pendem da parede de forma delicada. Desvio (2020) tem a beleza de um panejamento arrastado; a pregas denotam a turbulência nas ondas do tempo. Em Anacrónicas (2020), a artista capta a vida na sua infinita imprevisibilidade, ao deixar as marcas dos animais que pisaram o papel, com as patas sujas de grafite. Mina (2019) dependura-se frágil em três lápis cravados na parede, sujeita a esvoaçar com o vento. E em Com a Mão cheia de Pó-quase mesa (2018) resta o que é possível da pele de um objeto, ou da memória esboroada do mesmo.
O texto curatorial da autoria de Ana Rito alerta justamente para estas “imagens-contacto”, que requerem uma presença, um toque, uma – nas palavras da curadora – mediação. É a través dessa mediação ou dessa presença-contacto que a artista conjura e esconjura o tempo e o espaço para fazer a obra acontecer.
Com a mão cheia de pó é um registo poético de um lugar – preto no branco –, em que a poesia acontece na desconstrução da linguagem e da potência do desenho.
Até 28 de março, na Galeria Belo-Galsterer, Lisboa.