Inquieto, mas certeiro
Pedro Cabrita Reis é porventura dos artistas portugueses que melhor sabe teorizar a sua obra. Ouvi-lo falar é receber uma aula de história de arte; é percorrer muitos dos momentos de vanguarda; é questionar muitos “lugares seguros” e perceber que há sempre espaço para novos desafios nas fronteiras das disciplinas que abraça. Revela-se “simplesmente” como Cabrita na exposição A Roving Gaze (Um Olhar inquieto), concebida propositadamente e apresentada atualmente no Museu de Serralves. Quando percorremos esta exposição temos a sensação que nos está a dar uma dessas suas brilhantes “aulas”, onde a simplicidade está na forma para um complexo e rico conteúdo que exibe.
Ao longo dos vinte anos que passaram desde que expôs pela primeira vez neste importante museu de arte contemporânea em Portugal, o artista já nos brindou com várias fases da sua obra, com gestos de quem sabe romper, mas também de quem sabe revisitar o passado. Criou muita obra atestada por quem desenha a esculpir, pinta a fotografar ou constrói espaço a pintar. Cabrita sabe as cartas todas de cor, mas nunca sabemos como as vai baralhar, nem sequer temos a certeza se nos chegam inteiras ou em pedaços, mas ao longo do tempo foi-nos trazendo a segurança de que, quando nos fizer chegar o baralho, ele virá surpreendentemente completo.
Enquanto percorremos esta exposição, mais do que presenciarmos o seu olhar inquieto, percebemos que Pedro Cabrita Reis tem, sobretudo, um olhar certeiro sobre o seu papel na arte contemporânea, sobre as perguntas e respostas que nos foi dando ao longo do seu percurso e sobre as provocações que tem em mãos nos atuais desafios sobre o que é expor num museu. Ficamos com a sensação que não deixa nada por dizer. Entre palavras de ordem e interrogações, materiais com que nos tem brindado na sua obra e imagens de testemunho do tempo da mesma, o saber mapear toda esta informação sem cair na redundante cronografia ou historiografia de si mesmo é a interessante poética que aqui cria.
Numa instalação total que enlaça várias salas do museu viajamos por um arquivo ou um por um novo manifesto? Entre o natural e o artificial, a vida e a morte, a luz e a sombra, o retratar e o especular, as estruturas com que o artista nos presenteia estão cheias de ironias, contradições e muitos “piscar de olho” a polémicas do momento ou a eternas discussões como as que as noções de “belo” sempre nos trazem.
Saber ser ousado e exato em simultâneo está ao alcance de poucos e é assim que Pedro Cabrita Reis sabe ser. Num labirinto de informação, esta é talvez das exposições mais inusitadas que assisti. Trago a sensação que presencio uma coerente retrospetiva a partir, exclusivamente, de novas peças. O que ali está é tudo aquilo que o artista já nos ofereceu, mais aquilo que ainda nos quer dizer, sabendo muito bem reescrever o livro.
O artista contemporâneo pode não dominar uma técnica, mas tem de dominar a erudição, e Cabrita é o homem/artista que sabe bem o alcance da mensagem de cada material, de cada fio deixado no chão, de cada palavra rasurada. Entre a Fotografia, o Desenho, a Gravura, a Pintura, a Escultura, a Instalação e a Arquitetura onde cabe a sua obra? Em todo o (não) lugar que estiver ao alcance de a receber, quando já se espera que tudo esteja fora do cavalete, são estes os novos cavaletes metálicos que nos fazem perceber de novo que continuamos a sentir nos museus a dificuldades em fugir dos cânones e que Pedro Cabrita Reis continua, sobretudo, a ensinar-nos a pensar.
Até 15 de março podem/devem perder-se e encontrar-se por entre 100 elementos que Cabrita coloca a habitar o Museu de Serralves.