Solilóquio, Mariana Gomes na Cristina Guerra Contemporary Art
Mariana Gomes tem sido uma das pintoras portuguesas com trabalho mais entusiasmante na cena artística nacional. As bem-humoradas (e constantes) flutuações entre figuração e abstração, quer através do desenho ou até de modelações tridimensionais, conduzem-nos sempre ao assunto central da sua obra: o fazer da pintura.
Daí, talvez, a ideia de monólogo proposta pelo título da sua primeira exposição individual na galeria Cristina Guerra. De tela em tela, a artista assume as infinitas “conversas” internas que, no ateliê, enceta consigo mesma e com os outros (pintores e pinturas), assumindo um jogo mordaz com a história da arte e pondo em xeque o peso secular da tradição. Sobretudo, M. Gomes privilegia o exercício; a prática diária da pintura e a condição dicotómica de tentativa-erro, ainda mais evidente quando não se pretende tematizar nem politizar a figura, a matéria ou o acaso. E a história da pintura – ao contrário do que as academias e os compêndios propõem – nunca foi linear e é absolutamente indissociável do erro, de tentativas falhadas que sugerem caminhos desviantes, surpreendentes, que são indicados por estímulos visuais mais ou menos fortuitos ao longo do processo do fazer.
A pintura de M. Gomes move-se através desses estímulos que, vindos da pintura ou do mundo factual, propiciam cruzamentos insólitos, muitas vezes humorísticos, de referências variadas. A abstração parece-se com coisas e a figuração parece-se com quase nada; o azul celeste enclausurado numa moldura-intestino onde orbitam formas que se parecem com fezes; ou a pequena tela que apesar das diminutas manchas, azuis, laranja e castanha, teima em querer ser retrato.
Os constantes mecanismos de provocação presentes no trabalho de M. Gomes – tão bem explorados na recente exposição Canhota, na Fundação Carmona e Costa – deixam-nos alerta para cada pintura, para cada mancha. Fala-se em Tiepolo no texto desta exposição, mas, a propósito do painel de pinturas no tecto da galeria, poder-se-ia falar também de Michael Biberstein, nomeadamente pelo tecto da Igreja de Santa Isabel.
Apesar das cores vibrantes e das formas/manchas trepidantes, estas pinturas, estão longe de serem inocentes. Pelo contrário, são ardilosas. Comportam-se como organismos vivos, autossuficientes, capazes de determinar a sua própria completude, com maior ou menor saturação de marcas e matéria. No entanto, em Solilóquio, parecem menos acutilantes e mais bem-comportadas; o corromper de padrões, da geometria e da figuração, dá lugar a um amolecimento das formas, algo bucólicas. São formas-paisagem crivadas de marcas e de outras pequenas figuras, que estabelecem pontos de ligação com a pintura de Jorge Queiroz.
Mariana Gomes tem provado ser uma pintora em constante mutação, que, apesar de vários anos de trabalho consistente, procura invariavelmente novos estímulos e direções que resultam numa produção heterogénea, diversificada e estimulante.
Patente até dia 7 de março na galeria Cristina Guerra Contemporary Art