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Antes do início e depois do fim, Júlio Pomar e Hugo Canoilas no Atelier-Museu Júlio Pomar

Sem coleção permanente, mas assente numa ideia de diálogos e cruzamento de olhares, o Atelier-Museu Júlio Pomar dá seguimento ao respeitável programa de exposições que tem feito da obra do falecido artista uma constante novidade.  Desta vez é Hugo Canoilas quem (re)ativa a obra de Júlio Pomar, levando-a consigo para o fim do mundo, ou da humanidade pelo menos.

Antes do início e depois do fim tem um lado marcadamente cenográfico. Isto porque além da monumental pintura desengradada, de Hugo Canoilas, caída do “céu” e que condiciona todo o ambiente expositivo, somos nós (o público) o único testemunho humano da visão pré ou pós-apocalíptica sob a qual assenta a lógica da exposição desenvolvida em conjunto com a curadora Sara Antónia Matos. Nas paredes do Atelier-Museu escalam e voam bichos de todos os tipos; cerâmicas, pinturas, uma tapeçaria, pequenos objetos, assemblages e desenhos – exímios, diga-se – dão a ver o notável bestiário que Júlio Pomar criou ao longo do seu enérgico percurso. Gatos, insetos, cavalos, tigres (claro), camelos ou Pégasos. Todos estes animais são-nos inegavelmente familiares e parecem advir de um imaginário Natural apesar da sua mediação artificializada: mais do que na sua representação o foco destas obras está na transitividade da experiência (humana).

Por sua vez, as pinturas de Canoilas e os fragmentos em bronze espalhados pelo chão, extremam este jogo entre realidade e ficção, entre efémero e perene. Nas duas pinturas da mesanine, que vão sendo substituídas ao longo dos meses, sentimos um dedo apontado ao modelo civilizacional vigente. A representação de criaturas que existiram num tempo distante do nosso, refletem acerca de questões existenciais enraizadas no pensamento contemporâneo. Assim somos transportados para um território indefinido, fantasiado e fantasioso.

No contexto de uma sociedade neoliberal capitalista Ailton Krenak caracteriza a cultura ocidental como apologista de um conservacionismo que se preocupa mais em salvaguardar registos das coisas existentes (lugares, espécies, rituais, etc.), do que em aprender a conviver com as coisas em si, que ao invés de mudar os comportamentos destrutivos mantém-nos em prol de valores económicos. Assim, no fim do mundo, restaria um arquivo da natureza que ajudámos a destruir. A verdade é que estas sempre foram ideias queridas à arte ocidental, a inscrição do tempo em objetos. Talvez porque a arte seja de facto a expressão que mais proximamente lida com a morte; com a possibilidade de extinção.

Neste caso, a abordagem ao tema é plena de ironia. Porque aos artistas é também possível a subversão de códigos, abrindo outras e novas leituras. São disso exemplo a escultura de Pomar onde um pequeno símio está pousado sobre um quadrado negro [Quadrado Negro (Homenagem a Malevich) 1953-2003] e as duas pinturas de Canoilas onde criaturas, que sucumbiram ao próprio processo de extinção, tecem comentários sobre estar vivo. Ou ainda os pequenos bronzes, também de Hugo Canoilas, autênticos fósseis da contemporaneidade provenientes do período Cretáceo ou quiçá de uma loja de brinquedos.

Certa é a simbiose entre as criaturas mais ou menos fantasiadas pelos dois artistas e a vibração ruidosa do espaço onde nos rodeiam. A artificialidade é incorporada subtilmente no display, tornando-o real e tangível. Por momentos a humanidade extinguiu-se e aquilo que ficou, a arte, é mais real do que nunca.

Para visitar até dia 1 de março de 2020 no Atelier-Museu Júlio Pomar.

Francisco Correia (n. 1996) vive e trabalha em Lisboa. Estudou Pintura na Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa e concluiu a Pós-graduação em Curadoria de Arte na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Tem escrito para e sobre exposições. Simultaneamente desenvolve o seu projeto artístico.

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