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Topografias Rurais

As Galerias Municipais associaram-se à Diferença para comemorar os quarenta anos de actividade da cooperativa e apresentam uma exposição dividida entre a galeria Quadrum e a galeria Diferença perto do Largo do Rato. Esta exposição bipartida assinala, simultaneamente, o início do trabalho de Tobi Maier como curador nas Galerias Municipais, cuja direcção assumiu em março, e o regresso de Alberto Carneiro a dois espaços expositivos onde mostrou regularmente o seu trabalho nas décadas de setenta e oitenta. Para além de uma quantidade apreciável de trabalhos de Alberto Carneiro, a exposição inclui trabalhos de três mulheres artistas de gerações distintas: Ana Lupas, Lala Meredith-Vula e Claire de Santa Coloma.

O adjectivo rural é sabiamente utilizado no conceito curatorial e qualifica com especial acutilância o trabalho dos artistas aqui reunidos. Alberto Carneiro foi pioneiro, a seu tempo com expressivo reconhecimento internacional, da arte ecológica — encontramos nas suas notas para um diário (1968-1972) um manifesto para uma arte ecológica, que é recorrentemente lembrado nas publicações sobre o artista — mas é fundamental recordar que a ecologia, no contexto em que Carneiro a reclamou, tinha de ser entendida no contexto de um país estagnado e marcado por uma clivagem brutal entre as cidades de Lisboa e Porto e uma ruralidade pobre, atrasada e de escala doméstica que impregnava de tristeza a maioria do território. Este retrato do Portugal do final da ditadura em nada difere dos contextos onde foram desenvolvidos os trabalhos de Ana Lupas — na Transilvânia — e de Meredith Lala-Vula — no Kosovo e na Albânia — e é também essa similitude um dos nexos que permitem aproximar os trabalhos apresentados.

A ideia de paisagem subjacente a este conjunto de trabalhos nada tem que ver com a paisagem retiniana a que a arte nos habituou desde a descoberta da perspectiva, no século quinze. A paisagem aqui é vívida e sensorial, é habitada como Heidegger nos ensinou, é estritamente fenomenológica e é indissociável das manifestações artísticas. A paisagem é um tema fundacional da arte. E se o Modernismo das vanguardas pós-impressionistas foi uma realidade urbana, com o fervilhar político a acontecer nas metrópoles desenvolvidas da Europa e da América do Norte, os países pobres, como Portugal ou os Balcãs, permaneceram rurais e a pós-modernidade encontrou lugar para se instalar no campo pela mão dos artistas que, num gesto prenhe de significado político, levaram a arte da cidade cosmopolita para o território rural secundarizado. Esta exposição é um testemunho das várias modalidades dessa realidade nos últimos cinquenta anos.

Alberto Carneiro trabalha a paisagem — porque a paisagem é a natureza domesticada — mas o processo de domesticação, aqui, não é retiniano como na tradição pictórica ocidental, é um processo de imersão total do corpo na sua dimensão carnal. Isto é particularmente evidente na obra Operação estética / Vilar do Paraíso, 1973, que aqui é apresentada na sua versão final — a amarela, emprestada por Serralves —, materializada num vasto conjunto de fotografias que documentam a performance do artista quando, sob o olhar apenas do fotógrafo, actuou sobre medas de forragem, impondo-lhes uma ordem geométrica e activando-as através de uma sequência de procedimentos ritualizados. Uma obra pensada para ser fruída através dos objectos de mediação e fixação que são as fotografias impressas, montadas em painéis, a que adicionou comentários que condicionam e dirigem a interpretação.

Ana Lupas apresenta The Solemn Process, 1964-74, 1980-85, 1985-2008. As quinze fotografias registam o longo processo em que a artista trabalhou com habitantes de aldeias da Transilvânia para produzir um conjunto de esculturas, também elas marcadas pela produção de geometrias manufacturadas a partir de materiais perecíveis do campo, desafiando as populações a continuar a produção e a dispor as peças produzidas na paisagem e nas imediações das suas próprias casas. Lupas regressou às aldeias por duas vezes, a primeira no auge da crise sócio-económica para tentar o restauro das peças e a segunda, após ser confrontada com a impossibilidade prática de devolver as peças à sua integridade, para as reproduzir em metal com a ajuda de artesãos locais e recorrendo a técnicas tradicionais. Desse processo resultaria uma primeira exposição em Innsbruck, no ano 2008, onde foram apresentadas as peças metálicas e dois painéis de vinil com oitenta fotografias antigas, tingidas a sépia, documentando o processo. As quinze imagens nesta exposição foram seleccionadas desse conjunto hoje na colecção da Tate.

Também fotografias, mas fruto de uma estratégia quase oposta, constituem o trabalho de Lala Meredith-Vula que Tobi Maier escolheu para a exposição, depois de ter sido confrontado com o projecto na Documenta 14. Entre 1989, o ano da dissolução da cortina de ferro, e o presente, a artista documentou a presença de medas na paisagem do Kosovo e da Albânia, reflectindo sobre o modo como as actividades dos agricultores são capazes de transformar a paisagem e, especialmente, como através da fotografia se pode atribuir valor artístico a um objecto/acção pragmático/a originalmente destituído da componente estética. Este projecto assinala uma mudança de posição e caracteriza os anos da transição do milénio: o artista deixou de agir fisicamente na paisagem e passou agir sobre a paisagem, apenas e só, depois da mediação pela imagem fotográfica: da actuação corpórea passou-se à reflexão mediatizada.

Por fim, são apresentadas duas peças de Claire de Santa Coloma, duas esculturas delicadas e sensoriais — como acontece sempre no trabalho de Claire —, duas peças que nos falam da domesticação da natureza num movimento topograficamente inverso. Aqui, a matéria-prima é trazida da ruralidade para o atelier onde a artista, com o vagar da sua praxis delicada e meticulosa, a transforma em peças de grande intensidade.

 

O autor não escreve ao abrigo do AO90.

Formado em Arquitetura e pós-graduado em Teoria da Arquitetura, teve atelier durante vários anos até divergir para outras práticas ligadas à arte. Em 2007 foi curador do ciclo Praxis ou como fazemos o que fazemos na António Arroio e, entre 2008 e 2014 foi cocriador e curador da Escritaria. Passou pelo cinema documental, realizando várias longas e curtas-metragens centradas na literatura e no património edificado e, no seguimento de uma bolsa da Fundação Calouste Gulbenkian e de formação em fotografia no Ar.Co, focou-se na produção artística, tendo apresentado trabalhos na BoCA Bienal, Fórum Eugénio de Almeida, Bienal de Arte Contemporânea de Coimbra ou New Art Fest. Neste momento, está a concluir a Pós-Graduação em Curadoria de Arte na FCSH da Universidade Nova.

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