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A Linha em Chamas na Casa da Cerca

A História da Arte tem sido feita ao longo dos anos no masculino. Artistas mulheres (re)conhecidas, contam-se pelos dedos de uma mão. No cinema são mais destacadas as que trabalham em equipa, normalmente com os companheiros, mas ainda assim, são eles que são seguidos e ensinados nas escolas e faculdades como o caso da Margarida Cordeiro e António Reis ou Noémia Delgado e Alexandre O’Neill (em áreas diferentes) ou, se quisermos transpor para outros países Camille Claudel e Auguste Rodin. Mas têm surgido, nos últimos anos, movimentos que pretendem resgatar algumas artistas femininas da obscuridade.

A Linha em Chamas patente na Casa da Cerca, contribui para este resgatar, apresentando uma exposição focada em mulheres artistas, com uma curadora, Filipa Oliveira, que é, também ela mulher. Assim, e focando-se especificamente no desenho e nas vanguardas dos anos 60 e 70 em que a mão e o traço se libertam do papel, reúne seis artistas femininas que se libertam do papel e do estigma do artista masculino. São elas: Esther Ferrer, Gego, Helena Almeida, Kazuko Miyamoto, Lourdes Castro, Mira Schendel e ainda Joana Escoval, de outra geração que, como escreve Filipa Oliveira na folha de sala, “carrega e amplifica o seu legado”.

Tanto Helena Almeida como Lourdes Castro, dois nomes marcantes da História da Arte têm nos seus companheiros Artur Rosa e Manuel Zimbro respetivamente, companheiros de vida e de trabalho, tendo conseguido, contudo, destacar-se sozinhas (principalmente Helena Almeida). São dois exemplos de exceção num país que nos anos 60 e 70, estava mergulhado numa ditadura que impedia as mulheres de viajar sem a companhia ou autorização escrita dos maridos ou na sua ausência, dos pais ou mesmo de irmãos homens.

As obras têm ligações notórias entre si. Para além dessa libertação do traço, do papel, há uma incorporação da lã, do fio de algodão, do têxtil que remete para os lavores femininos, facilmente identificável na obra Sombra Projetada de Pedro Morais (1970) de Lourdes Castro, em que o contorno humano aparece bordado na almofada branca. Lourdes Castro trabalha as sombras com um caráter de depuração mas fornece-lhes qualidades próprias que as emancipam do referente não se limitando a ser a sombra de Pedro Morais, antes dá-nos a oportunidade de, a partir da essência de um contorno, fazermos uma viagem mental sobre o que poderá significar esse mesmo contorno.

Helena Almeida, retira as linhas dos livros em Saída Negra (1981) e Main traversée par les mots d’un livre (1980) e transforma-a em crina de cavalo, deixando as páginas brancas, mas transformando o ato de riscar numa intervenção tridimensional viva, ultrapassando os limites do livro, espaço pictórico ou narrativo, mas que para a artista se transforma numa escultura, uma memória dos traços que povoaram as suas folhas.

Gego em Dibujo sin papel 87/2 (1987) também retira o esboço do papel dando-lhe tridimensionalidade. O esboço sempre esteve ligado ao desenho. Mesmo os escultores o utilizam como base de estudo e preparação para outras obras pictóricas ou escultóricas. Até o cinema o utiliza em storyboards na planificação de um filme. Gego constrói uma escultura frágil, com pequenos arames e pregos que elege o espaço físico da galeria como suporte, quase como se a obra se descolasse do papel e da bidimensionalidade.

A instalação Variações da série Proyectos espaciales piramidales (1970) de Esther Ferrer é apresentada pela primeira vez. A maquete da obra foi feita em 1970, mas só agora é produzida na escala em que a podemos ver e apresentada ao público. Esta obra construída com fios, tem o espaço arquitetónico como suporte e permite alguma interação com o visitante. Tal como os traços a carvão numa folha branca, à distância a obra não é percecionada em pleno e exige uma aproximação física.

Kasuko Miyamoto expõe Untitled (1975) com muitos pontos em comum com as outras artistas. Kasuko também usa o fio para criar uma obra que cruza práticas artísticas diferentes, utilizando a parede como suporte (tal como Gego ou Esther) de um embrincado jogo de fios presos a pregos, quase como um jogo infantil, criando uma obra geométrica.

Ondas Paradas de Probabilidade (1969) de Mira Schendel compõe-se de milhares de fios de nylon que caem do tecto e de um texto do velho testamento. Tal como a chuva parece invisível, mas não é, também a obra de Schendel permite uma observação difusa, uma transparência silenciosa que apela à contemplação.

Joana Escoval é a artista mais jovem e trabalha habitualmente no campo da escultura, aqui expõe It arises not from any cause, but from the cooperation of many (2018) e embora a sua peça não utilize o mesmo tipo de materiais das restantes obras expostas, tem essa capacidade de criar dúvidas e de se soltar da mão artística para se apropriar do espaço onde está e de dialogar ela própria com as restantes obras.

A Linha em Chamas é precisamente a desconstrução da linha e do desenho a caminho de outras possibilidades artísticas, de uma perspetiva feminina ancorada em ventos de mudança como foram as vanguardas e que é essencial aprofundar a partir deste olhar feito por mulheres.

A Linha em Chamas para ver na Casa da Cerca até ao dia 16 de fevereiro.

Com uma carreira em produção de cinema com mais de 10 anos, Bárbara Valentina tem trabalhado como produtora executiva, produzindo e desenvolvendo vários documentários e filmes de ficção para diversas produtoras entre as quais David & Golias, Terratreme e Leopardo Filmes. Atualmente ocupa o cargo de coordenação de pós-produção na Walla Collective e colabora como diretora de produção e responsável pelo desenvolvimento de projectos na David & Golias, entre outros. É igualmente professora na ETIC, no curso de Cinema e Televisão do HND – Higher National Diploma. Começou a escrever artigos para diferentes revistas em 2002. Escreveu para a revista Media XXI e em 2003 começou a sua colaboração com a revista Umbigo. Além desta, escreveu também para a Time Out Lisboa e é crítica de arte na ArteCapital. Em 2010 terminou a pós-graduação em História da Arte.

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