Sara & André e Arlindo Silva na box da Appleton
Porque é habitual neles, Sara & André, permitam-me que desta vez me faça acompanhar de outra artista. Sturtevant, ou Elaine Sturtevant, faleceu em 2014, mas durante cerca de cinco décadas desenvolveu um projeto ad continuum que (felizmente) foi deixando mais dúvidas e incertezas, acerca da conceção da Arte e do papel do artista, do que respostas e imposições teóricas (muitas vezes tão vincadas quanto aborrecidas).
Não podendo ser interpretada como um caso isolado muito menos desprovido de raízes, Sturtevant extremou o questionamento de valores opacizados pela história da arte, tal como o de originalidade. Houve muitos outros artistas que esboçaram aproximações críticas às ideias fundadoras da Arte (moderna, contemporânea e ocidental). Ainda assim, nem Duchamp com o ready-made; nem Sol Lewitt com os Wall Drawings; nem Jeff Koons, mais tarde, com as esculturas desprovidas de lavor humano, se aproximaram da radicalidade da proposta anti-autoral (?) de Sturtevant.
A artista americana dedicou-se a refazer obras de outros artistas com os quais se cruzava e pelos quais se interessava. A receção do seu trabalho por parte da crítica, das instituições e do público, foi sempre difícil e conturbada, no entanto, foi sobretudo no interior da “comunidade artística” que se deparou com as maiores e mais fervorosas discussões. Por exemplo, a reconstituição de Sturtevant do projecto The Store (1961), de Claes Oldenburg, seis anos depois e perto do local original, com o título The Store of Claes Oldenburg, gerou animosidade com o artista e com o célebre art dealer Leo Castelli. Por outro lado, Andy Warhol, admirador confesso da lógica apropriacionista de Sturtevant, convidou-a a ir ao seu ateliê para que usasse os quadros serigráficos das suas Flower Paintings. Warhol, talvez por ter sido dos tais artistas que mais se aproximou das questões inerentes à reprodutibilidade das imagens e, por consequência das obras de arte, dizia que teria muito gosto se um dia houvessem tantas Flower Paintings feitas por outros, que já não fosse possível distingui-las entre si.
Além do lado provocador e irónico, a obra de Elaine Sturtevant ganha outra profundidade cada vez que é mostrada. Imagine-se uma instituição que anuncia a exposição de uma artista e aquilo que vemos num primeiro momento é uma coleção museológica onde se identificam de imediato (aparentes) Andy Warhol, Roy Lichtenstein, Félix González-Torres, etc… todos eles misturados e organizados segundo a intuição da própria artista. No fundo, Sturtevant suspendia as limitações do papel de artista e fundia-o com o de curadora, podendo manipular livremente obras que no caso dos originais estavam fragmentadas e distantes dados os seus múltiplos autores.
Digamos que, acima de tudo, Sturtevant fez do papel de artista, enquanto agente central no sistema artístico (embora crescentemente fragilizado), o tema do seu projeto, diluindo-se enquanto autora, e prescindindo de conceitos seminais como a originalidade ou a criatividade – ainda que hoje seja evidente que nem um nem outro se verificam.
Na box da Appleton, em Alvalade, enquanto olhava para a pintura de Arlindo Silva que retrata Sara e André, a olharem para uma outra pintura de Arlindo Silva que retrata também Sara e André, recordava a artista americana e o possível paralelismo com a confusão semeada pela dupla portuguesa cada vez que tem uma exposição.
Desta vez, o que vemos é uma matryoshka de exposições, como refere Ana Anacleto, curadora que lançou o convite aos Sara & André que por sua vez o estenderam a Arlindo Silva. A dupla que faz do convite o mote para todos os seus projetos, faz-se acompanhar por amigos e colegas que através de um contrato aceitam fazer parte da sua Fundação, transformando Sara & André num agente informe que é simultaneamente artista, instituição ou curador – este último consumado no projeto Curated Curators (I, II e III), 2017. Tudo e todos os que orbitam nesse seu universo acabam sendo parte do seu circuito artístico ficcionado. A dupla é, no limite, imaterial e é o próprio medium, André e Sara são também a pintura de Arlindo Silva, enquanto promotores da criação artística, e por isso dela indissociáveis.
Assim, constitui-se a exposição Ainda da dupla e a exposição Presente de Arlindo Silva; na box vemos uma pintura e uma publicação. A pintura de Arlindo Silva, o único (?) objeto artístico na sala, é inevitavelmente arrastado pelo turbilhão de interrogações gerado pelo trabalho de Sara & André.
Este encontro é a prova de que uma exposição não depende necessariamente apenas dos objetos que a constituem (muito menos da sua quantidade) para abalar quem a visita. Apesar das qualidades intrínsecas à obra de Arlindo Silva, neste contexto ela deixa de ser só pintura e saímos repletos de dúvidas e incertezas quanto aos papéis, ao role-playing, de cada um dos agentes no mundo artístico contemporâneo. Desde logo: afinal quem, ou o que é Sara & André?
Ainda de Sara & André e Presente de Arlindo Silva para visitar na Appleton até dia 30.01.2020