Aparelho – Conversa com Tales Frey
Depois da exposição Adorno Político (2018), a sala de exposições do Maus Hábitos (Porto), conduzida pela Associação Cultural Saco Azul, vê-se novamente apropriada pelo curador Tales Frey e um novo conjunto de artistas brasileiros. Desta vez, o espaço é convertido num Aparelho heterogéneo e arrojado, onde se expõem obras, objetos, mas também ideias e convicções. Tal como nos aparelhos, lugares que se formaram no Brasil durante a ditadura militar de 64/85, reúnem-se práticas e expressões artísticas ativistas com ideologias sociopolíticas discordantes do governo vigente.
O atual regime autoritário e neofascista brasileiro tem tido profundas repercussões à escala universal, razão pela qual se revela importante desenvolver ocasiões de expressão artística que não se circunscrevam a limites geográficos. O presente panorama é chocante e é precisamente esse o efeito provocado pela maioria das imagens que se encontram na exposição, com discursos de “denúncia e crônica”, recorrendo às palavras de Sama, um dos dezoito artistas convidados.
Aparelho está ativo até 30 de dezembro, tendo inaugurado a 14 de novembro com uma atuação dançada pelo perfomer queer Pêdra Costa. Ora, como o artista Paulo Aureliano da Mata afirma na sua peça, “Se não puder também dançar, esta não é a minha revolução”.
Constança Babo – Caro Tales Frey, parabéns pela atual exposição. Quer falar-nos do desenvolvimento do seu atual projeto, nomeadamente sobre a transição entre as duas exposições e o princípio adotado na escolha dos artistas?
Tales Frey – Obrigado pelos parabéns, Constança. Fico extremamente satisfeito quando recebo um cumprimento tão positivo sobre algo feito com extrema integridade. Bem, há uma relação muito direta entre a exposição Adorno Político e Aparelho. Na primeira exposição, eu elenquei artistas que, por meio de suas exterioridades, discursavam sobre como as suas existências mais desprendidas das normas podiam ser vistas como ameaças aos contextos ainda tão conservadores, ou seja, reuni corpos que se posicionavam politicamente através de adornos corporais ou das reflexões sobre tais adornos. De novembro de 2018 para cá, muita coisa aconteceu no Brasil, então optei por reunir justamente artistas/ativistas que são renegados e perseguidos atualmente e que se apresentam de forma consciente e direta contra toda essa brutalidade instituída.
CB – Tendo ambas as exposições sido apresentadas enquanto dotadas de cariz político, a mostra atual sê-lo-á mais visível explicitamente. Concorda? Está o acentuado caráter ativista em acordo com o agravamento do contexto sociopolítico brasileiro no último ano?
TF – Absolutamente. Resolvi adotar um discurso bem mais frontal. O Brasil tem-se transformado em uma espécie de neocolônia onde fazem um cruzamento de fascismo com neoliberalismo, onde o narcotráfico caminha de mãos dadas com o neopentecostalismo. As pessoas que estão no poder atualmente, não por coincidência, são favoráveis ao porte desequilibrado de armas e, ao mesmo tempo, são contra a cultura e a educação como necessidades básicas. Difundem o ódio para desamparar índios, negros, LGBTQIA+, mulheres etc.
Claro que há gente inocente que adere ao discurso de ódio propagado através das estratégicas fake news promovidas pela corja que hoje governa o Brasil. Muita gente adere este tipo de posicionamento por pura fé cega e/ou ignorância, mas há oportunistas mal-intencionados como o Roberto Alvim que, neste ano, direcionou todo seu discurso de repulsa à geração que questiona o patriarcado, a cisheteronorma, o colonialismo etc. Alvim condenou publicamente a atriz Fernanda Montenegro por ela ter afirmado a aceitação de existências diversas. Como pode alguém ser defendido por uma parcela da população por ela se manifestar contra as existências diversas ou contra quem as defende? Aparelho reflete sim o ano de 2019, que foi um ano de grandes atrasos no Brasil e em alguns países da América Latina.
CB – Em relação à concretização deste projeto em território português, pergunto-lhe se seria viável fazê-lo no Brasil ou se aí se sente uma repressão que não permitiria instalar um espaço de tamanha liberdade criativa e expressiva.
TF – Só por haver tal dúvida já fica evidente que estamos atravessando um período tenebroso. Mas, particularmente, eu acho que esta exposição não aconteceria em espaços mais conhecidos nas cidades brasileiras, como é o caso do Maus Hábitos em relação ao Porto. Havendo financiamento público ou privado, então tenho a certeza de que tal exposição não aconteceria facilmente no Brasil.
CB – Simultaneamente, compreende estas ocasiões enquanto oportunidades para comunicar de modo mais real as problemáticas do Brasil, sem a mediação dos meios de comunicação de massa?
TF – Claro. Eu não dispenso nenhuma brecha. Assim como diariamente tenho sido didático para alertar sobre um nefasto projeto que tem ganhado força, quando tenho acolhimento de algum veículo de informação, procuro expor tudo sem fazer concessões.
CB – Como última questão, pergunto-lhe se já prevê, ou se deseja concretizar, uma terceira exposição contígua a este projeto?
TF – Aparelho e Adorno Político atenderam a um convite feito para os anos de 2018/2019. Infelizmente, não tenho atividade prevista para 2020 no espaço, mas para o final de 2021, tenho a curadoria de uma exposição individual da artista luso-brasileira Suzana Queiroga, que produz trabalhos belíssimos e completamente engajados com relação às questões ambientais e, desta forma, mais uma vez, a abordagem será política. Afinal, considerando o mundo que nos circunda, não temos como ignorar tudo que chega a nós. Temos que estar posicionados e a arte é uma ferramenta poderosa de difusão das nossas ideias.