Hugo Olim em Ilhéstico
Hugo Olim é um respigador de imagens e sons. O seu corpo de obra incide maioritariamente sobre found footage e relaciona-se de forma experimental com o som ou a tecnologia, através de um cuidadoso trabalho de montagem e apropriação, com o objetivo de expandir o campo de diálogo de imagens que pertencem ao cinema.
Podemos ver duas obras de Hugo Olim (n. 1978, Madeira) no âmbito do Ilhéstico (a comemoração dos 30 anos da Porta 33), com curadoria de Miguel von Hafe Pérez: Subs (2011-2019) no espaço da Porta 33 em exposição coletiva até 31 de dezembro e Head, Tail, Rail (2013) no Screenings Funchal, nos cinemas NOS até ao final de novembro.
Subs é uma construção de histórias inventadas, onde Olim cria novas narrativas através da desconstrução de películas de trailers cinematográficos, apropriando-se somente das legendas destes trailers e acionando novas leituras ao que é dito em filmes comerciais, que não identificamos, nem queremos identificar. Porque o filme que Olim cria é completamente imersivo para quem vê. Tal como em Head, Tail, Rail, as imagens são, a par das legendas, imagens da” zona técnica” de películas de 35 mm e nunca se torna enfadonho ou repetitivo, porque a desconstrução de uma história a partir das legendas e a forma como o artista as reposiciona, não apenas no plano, mas também no tempo do filme (e o cinema é também e sobretudo tempo) é uma experiência única, pois Olim faz o que para Paul Klee é um atributo da pintura, que é tornar percetível, o impercetível.
Se em Subs Hugo constrói narrativas, em Head, Tail, Rail, constrói geometrias e ritmos. Aqui, Olim manipula novamente a parte invisível da película de 35 mm: a zona das perfurações que seguram a película primeiro na câmara de filmar e em seguida no projetor e o som ótico, ou seja, o som que está em pista imprensa na própria película e cujas linhas sinuosas conseguimos ver a espaços. Em cinema considera-se que o que não aparece no plano, mas existe para além dele, é o “fora de moldura” (ou “fora de campo”). Aqui, poderíamos dizer que Olim escolhe apresentar o fora de moldura físico ou até a própria moldura, se considerarmos que a moldura serve de contenção à imagem, como considera Jacques Aumont: “a moldura é o que separa a imagem do seu exterior.”[1]. Esta curta-metragem é uma espécie de sinfonia visual e acústica, com diferentes cores e texturas e até alguma sujidade típica da película (inexistente no caminho para o 4K). Mas esta película corre, a maior parte das vezes, em sentido longitudinal, como se negligenciasse qualquer necessidade de estar segura a um projetor. As perfurações, perdem assim, a sua função e tornam-se um elemento geométrico que nos dá uma métrica visual e uma composição rítmica. Não há nada que nos indique a proveniência da película e, embora, a espaços se vejam letras ou números e num trecho se vejam até uns planos de figuras (femininas), não vemos imagens que sejam identificáveis. O suporte fílmico torna-se o próprio filme e o som não apresenta também qualquer presença diegética, excetuando uns raros e rápidos momentos musicais e funciona como uma espécie de interferência. No fundo, é como se as ausências de um filme (as perturbações sonoras e visuais) ganhassem vida própria, trazendo para o campo visual e sonoro, aquilo que nos esforçamos sempre por esconder. A função técnica ganha forma e função artística.
As obras de Hugo Olim sobre película, são uma espécie de ready-made, em que um objeto comum como um suporte fílmico analógico, ao qual Olim retira as partes menos importantes de todas (as invisíveis), são elevadas ao estatuto de obra artística. É um ato artístico ancorado em práticas de meados do século XX, nomeadamente o Surrealismo (ou até, se quisermos ser exaustivos, a experiências cinematográficas tão antigas como as de Muybridge). O trabalho de Hugo Olim resulta de uma prática longa, minuciosa e complexa do ponto de vista técnico, mas não é só o trabalho manual (que nos dias de hoje está cada vez menos presente) que é complexo, mas também o pensamento que preside às escolhas do artista e que questionam a verdade do que vemos. Nada é fruto do acaso, ainda que o seja.
Oscar Niemeyer disse numa entrevista, sobre uma obra sua que o importante não são as arcadas, mas sim o espaço entre elas. Também para Hugo Olim o importante é, muitas vezes, o espaço entre as coisas. Os silêncios, os vazios, ou tão somente os códigos escondidos, que manipula de forma a levantar questões sobre o visível, sobre a imagem e sobre tudo o que faz parte deste visível, mesmo que esteja oculto.
[1] Aumont, Jacques, A Imagem. Lisboa: Edições Texto & Grafia, 2011, 3ª Edição, pág. 86