À conversa com a curadora Sílvia Guerra, na feira de arte de Paris, FIAC
Sílvia Guerra é a diretora artística de Lab’Bel, o laboratório artístico do Grupo Bel (criado em 2010), uma fundação suportada pela família que detém a companhia francesa La Vache qui Rit (então criada em 1921). Desde a sua fundação, Sílvia Guerra é responsável pelo programa artístico composto por diversas série de projetos e exposições concebidas em contextos locais e internacionais, mostras coletivas, temáticas e também a chamada “collector’s box” – uma caixa do famoso queijo, desenhada todos os anos por diferentes artistas contemporâneos e à venda em edições limitadas. O stock das caixas colecionáveis está à venda nos habituais pontos de venda, mas também na prestigiada feira de arte de Paris, FIAC, como um agente intrusivo que questiona o valor do “objeto de arte”. Este ano a Collector Box #6 foi desenhada por Daniel Buren e as anteriores por Karin Sander (2018), Wim Delvoye (2017), Jonathan Monk (2016), Thomas Bayrle (2015), Hans Peter Feldmann (2014). A natureza versátil da caixa é juntar a arte conceptual e o humor característico da marca com os vários contextos da arte erudita e dos supermercados. Disponível, consumível, a caixa torna-se, não obstante, um objeto abstrato, especialmente na edição atual em que Daniel Buren a desenvolve de acordo com um módulo construtivo de listrados.
Marta Jecu – Podia apresentar-nos a marca em poucas palavras?
Silvia Guerra – Eu trabalho como comissária e diretora artística para o Lab’Bel, um laboratório artístico do grupo Bel subvencionado pela família do grupo Bel (não pela indústria). A família que dirige a empresa teve sempre uma história ligada à arte, porque a própria La Vache qui Rit foi um logótipo criado pelo ilustrador Benjamin Rabier. Durante os anos de guerra, La Vache qui Rit era uma brincadeira dos soldados franceses aos soldados alemães. Eles diziam: vocês têm a “Valkyrie”, nós temos a “vachkyrie”. E daí Benjamin Rabier ter criado este ícone que foi apropriado por diversos artistas. Por exemplo, Wim Delvoye tem uma coleção enorme de etiquetas da La Vache qui Rit, na qual consta a obra Sobre a origem das espécies, feita só com as etiquetas.
A fundação tem uma coleção e faz exposições em itinerância porque não tem um lugar para o efeito. Somos acolhidos por outras instituições: monumentos franceses, bibliotecas e projetos europeus. Fizemos uma série dedicada às arquiteturas modernistas, em que foi feito um projeto em Barcelona no pavilhão Mies van der Rohe, depois na villa Savoye de Le Corbusier e em 2017 na Maison Louis Carré, perto de Paris. E depois fizemos outra série intitulada Metaphoria: a primeira exposição foi em Guimarães, a segunda foi em Atenas e a terceira foi em Paris no Le Centquatre-Paris (104), no ano passado.
MJ – O projeto 435 Ponti e qualche scorciatoia, realizado em 2019 com David Horvitz em Veneza, foi também parte duma série?
SG – Sim, faz parte de uma série desenvolvida em Veneza, com projetos concebidos para o espaço público da cidade, que tentam ser a versão contrária do peso de uma bienal. A ideia é fazer projetos invisíveis, procurando tocar os venezianos e as pessoas que passam neste enxame de turismo. A máquina da bienal é uma máquina muito usada a nível de transporte e de investimento. O nosso projeto é o contrário disso: só convidamos um artista a vir trabalhar com o que existe em Veneza. Para um americano que veio de Los Angeles, a quantidade de pontes que existem na cidade é uma curiosidade. Em Veneza há 435 pontes e o projeto resultou da vontade que David Horvitz teve em atravessar as 435 pontes como um samurai, numa noite. Eu fiz esta tentativa também, mas em diversos dias.
E em cada ponte que o artista passava, como nos contos de Hansel e Gretel, deixava uma flor de alcachofra para marcar a passagem. Então Horvitz desenvolveu o seu próprio mapa da cidade, das pontes, e apropriou-se um pouco dessa cidade tão bidimensional que é Veneza, conhecendo lugares e colaborando com os venezianos. Por exemplo, com a gelataria local Alasca ele resolveu fazer um gelado durante toda bienal que é um sorvete com água do mar Adriático, aludindo à água do mar e à imigração.
MJ – Era comestível?
SG – Sim. O artista acredita nas teorias biológicas que dizem que nós viemos do mar e temos água salgada dentro do nosso corpo. Quando nós voltamos a pôr água salgada no nosso organismo é como voltar ao início de tudo, às primeiras células, ao mar, e é isso o fundamento desse projeto.
Mas David Horvitz tem outros projetos. Por exemplo ele fez um poema que imprimiu no papel para embrulhar doces numa pastelaria e quando as pessoas compram qualquer coisa, levam embrulhado o poema Tu Neblina. Esse projeto é também uma homenagem a Stravinsky, que está enterrado no cemitério em Veneza. David Horvitz ao visitar algumas igrejas de Veneza, disse: tem órgãos maravilhosos, órgãos do século XVII lindos e eu adorava que as crianças de Veneza pudessem ir às igrejas tocar o órgão. No projeto 3 Easy Pieces #2, trabalha com as peças que Stravinsky criou para os seus próprios filhos aprenderem a tocar piano (uma valsa, uma polca e uma marcha.) Nós pedimos ao responsável pela afinação dos órgãos da região do Véneto para adaptar estas três peças fáceis do piano para órgão e convidámos crianças de 6 e 7 anos que tocam piano, para irem à igreja de São Roque tocar as três peças de Stravinsky.
MJ – Podia falar também sobre a Colectors’s Box apresentada hoje na Fiac?
SG – A ideia surgiu há seis anos com o intuito de criar uma ligação entre um artista que já tem um percurso muito reconhecido e uma obra que do ponto de vista internacional seja facilmente reconhecida. A caixa de queijo de 24 triângulos é um meio para fazer uma pequena obra de arte e explicar às crianças em casa o que é arte conceitual. É uma forma de partilhar arte. Este ano coube a Daniel Buren, que teve uma produção difícil devido às dimensões das bandas coloridas coladas nas caixas (a banda de 8,7 centímetros), que acabaram por ser coladas à mão por uma associação com pessoas com deficiência. Claro que estes artistas levam isto um pouco como uma brincadeira. Gostam da La Vache qui Rit e divertem-se com isto.
MJ – Onde vai ser exposta a coleção de todas as caixas?
SG – Essa coleção foi criada para comemorar os 100 anos da Vache qui Rit em 2021. E já há várias coleções de museus que têm a coleção (por exemplo o Museu de Arte Contemporânea de Marselha e outros museus alemães). Esperamos que em 2021 podemos expô-las todas e convidar os artistas a realizar outros trabalhos.
Por Marta Jecu