Main Entrance. Quinta do Monte (1983-88) de Lourdes Castro
Essencialmente documental, a exposição Main Entrance. Quinta do Monte (1983-88), visitável na Fundação Carmona e Costa até 9 de novembro, dá a conhecer uma parte da vida e da trajetória artística de Lourdes Castro (Funchal, 1930), sobretudo quando regressa à ilha da Madeira, na década de 80, após 25 anos sediada em Paris.
O projeto curatorial, com assinatura de Paulo Pires do Vale, assume-se despojado e intimista, à semelhança da produção da própria artista, e tem a virtude de desvendar o contexto específico em que as obras plásticas em exibição, da sua autoria, foram produzidas ou inspiradas: a Quinta do Monte, onde Lourdes permanece até a habitação que idealizou, também na Ilha (zona do Caniço), estar concluída. Séries de desenhos (destaque para Sombras à volta de um centro que, a partir de um recipiente com flores colocado sobre papel, e iluminado por um foco de luz, regista o contornos de malmequeres, camélias ou estrelícias), mas também painéis de azulejos, uma tapeçaria ou uma toalha bordada (entre outras), correspondem às últimas peças que, já contabilizando décadas, a artista produziu e decidiu tornar públicas (algumas inéditas). Desenhos do companheiro Manuel Zimbro (reportando à vegetação endémica do arquipélago), uma pintura do amigo Manuel Amado (do interior do palacete oitocentista), objetos pertencentes ao mais distinto habitante do espaço (Carlos da Áustria, imperador austro-húngaro que, no exílio, habitou a quinta e aí faleceu), e uma entrevista projetada, complementam e enriquecem o projeto.
No entanto, a exposição tem como ponto de partida e foco central um objeto ainda não referenciado: o Álbum da Quinta do Monte, que é agora publicamente apresentado pela primeira vez. Lourdes Castro desenvolveu-o reportando aos cinco primeiros anos (entre 1983 e 1988) que marcaram o seu regresso definitivo à Ilha. Nesse período habitou, por empréstimo da família Rocha Machado, a histórica e imponente Quinta do Monte, juntamente com Manuel Zimbro, coautor de muitos projetos.
O álbum, exibido nos tradicionais dispositivos museográficos destinados à instalação de documentação, confere à exposição uma vocação assumida, mas não exclusivamente arquivistica. Na composição do livro, que começou por ser branco, foram incorporados, desenhos, fotografias quer do espaço (do seu interior e exterior), quer do casal de artistas; agregando ainda uma coleção de registos de alguma da vegetação da Ilha, assim como recortes, originais ou fotocopiados, de algumas publicações (entre livros, jornais ou revistas) com alusões ao espaço e ao seu mais ilustre morador. A Quinta manteve a sua porta fechada durante muitas décadas até à chegada da artista que, neste projeto, alia o presente ao passado, tentando reconstituir as características e memórias do espaço. O tempo para Lourdes Castro é longo e respeita-o como à ordem natural das coisas.
Tem sido recorrente no seu trabalho, o destaque que Lourdes Castro concede aos livros de artista que desenvolve. Livros-objetos com uma forte componente diarística são, em si mesmos, autênticas obras de arte, guardiãs do seu inconfundível e delicado traço, dos seus interesses e inspirações, das suas memórias. Catálogos decorrentes do seu hábito de contemplar, colecionar e recoletar, podem ser considerados espelhos do seu quotidiano em que a arte, inevitavelmente, se cruza com a vida. Não pode deixar de ser referenciada a exposição Todos os Livros que, organizada em 2015 pela Biblioteca de Arte da F. C. Gulbenkian (com a mesma curadoria), deu a conhecer a diversidade de formas, técnicas e materiais que Lourdes Castro utiliza na conceção dos seus livros de artista (únicos ou de edição muitíssimo limitada): de recortes de revistas e jornais, passando por colagens de fotografias ou de invólucros de produtos (como chocolates e sabonetes), incorporando ainda postais e até mesmo objetos (como fósforos, tecidos ou botões). A inserção de serigrafias, recortes em plexiglas, carimbos ou alumínio, também se tornaram frequentes.
A espontaneidade, a recusa dos cânones e suportes tradicionais, bem como o consequente experimentalismo marcaram, desde sempre, a singularidade da produção artística de Lourdes Castro. Abraçando inicialmente o abstracionismo (de cariz lírico) e deixando-se seduzir mais tarde pelo novo realismo (sempre com um piscar de olho à herança da vanguarda dadaísta), a sua obra reflete alguns dos principais postulados da contemporaneidade: a conceptualização, desmaterialização e consequente dessacralização do objeto artístico. No entanto, em certa medida, distancia-se dela ao privilegiar continuamente a contemplação, da natureza em particular, mas também da esfera do quotidiano e do doméstico, tal como o aparentemente invisível, os detalhes, aquilo que é, por norma, observado furtivamente e desconsiderado. Para a artista tudo é precioso, e potencialmente espantoso, mas tem sido à sombra que tem dedicado a sua mais consistente investigação plástica e conceptual (desenhando-a, recortando-a e moldando-a, quer em tela, plexiglas ou tecido, como acontece com a toalha em exibição).
Espécie de ermita, marcando desde cedo um consciente distanciamento do meio artístico e da imposição de produzir regularmente, esta exposição traz Lourdes Castro de volta ao circuito expositivo. Não apresentando novidades ou revelações em termos da sua obra plástica, revela aspetos da sua vida que a condicionaram e têm permanecido desconhecidos. Por tudo isto merece uma visita.
Para ver na Fundação Carmona e Costa até 9 de novembro.