Ilhéstico, 30 anos de Porta 33 | Parte II
Ilhéstico é um projeto criado para comemorar os 30 anos da Porta 33 na Madeira com curadoria de Miguel von Hafe Pérez. São 45 jovens artistas de origem madeirense, num percurso expositivo em diálogo com a cidade do Funchal. Todos estes artistas se relacionam com a Porta 33, o que é incontornável, dado o peso e a importância do trabalho que a Porta 33 tem vindo a desenvolver na Madeira nestes últimos 30 anos.
Este convite aos artistas, na sua maioria na diáspora, formula uma proposta de olhar para a cidade, para que interviessem na própria arquitetura e na memória espacial e afetiva, propiciando leituras diversas do que é habitual na cidade, afastando este projeto do que poderíamos esperar de um percurso expositivo.
O Ilhéstico multiplica-se assim, em apontamentos artísticos muitas vezes de rotura, outras vezes de continuidade, criando narrativas ou trazendo à luz histórias menos conhecidas, questionando tradições ou refrescando-as. É o caso de Ricardo Barbeito com Agora Tu, Agora És Tu na Casa Museu Frederico de Freitas. Ricardo é sobrinho-neto de Frederico de Freitas e pediu à tia para contar histórias da família a partir das quais cria uma narrativa no percurso expositivo da casa-museu através de objetos e fotografias ligados a essas histórias. Esta intervenção é subtil, porque Barbeito considera que “o importante quando se cria um diálogo com um museu é não ofuscar”. Ou seja, Barbeito acrescenta pequenas leituras ao normal percurso expositivo, sem que nos sintamos sobressaltados, ao mesmo tempo que as suas fotografias dotam o espaço do museu de uma certa familiaridade, tornando-o um mais próximo de uma casa, pois todos os espaços são depósito de uma memória acarinhada e reinterpretada pelo artista.
É também sob o signo da memória que se debruçam Hélder Folgado, Duarte Ferreira e João Almeida em Atmosferas Líticas (2019). Esta instalação exposta na Fortaleza de S. João Baptista do Pico inspira-se na arquitetura vernacular, em particular nas gigantescas cisternas que foram construídas na ilha para armazenar a água necessária para a agricultura. Assim, temos uma espécie de tríptico que inclui uma escultura com água, que reflete o teto abobadado da fortaleza (e que, em menor escala, tem reminiscências das abóbadas desses tanques gigantes) ou os visitantes que irresistivelmente se debruçam sobre a água, qual narcisos, ao mesmo tempo que ouvimos o som de gotículas de água que ecoam pelo espaço e um vídeo que revela texturas das paredes das cisternas. Atmosferas Líticas torna-se deste modo uma obra-memória sensitiva, já que o espaço da fortaleza permite esse tipo de fruição.
É o caso de Dayana Lucas com duas obras que de tão subtis e tão enquadradas corremos o risco de não as ver. Por um fio, é uma intervenção na fachada do edifício Porfírio Marques, Lda., mais concretamente na varanda que encima o edifício. Dayana fechou essa varanda, aproveitando elementos vegetalistas presentes na fachada e o resultado é de tal forma bem conseguido que pensamos que sempre existiu assim. Na livraria Esperança, uma livraria emblemática, com uma disposição muito particular quase labiríntica, Dayana dispõe Dulce Espina Dorada um livro que se rasga lembrando Lucio Fontana e um vitral Sangue-luz que devia existir, mas não existe.
Também subtil é Bruce Paulino da Silva, que em Stoneheld pontuou as vitrines do Café Estoril com objetos feitos a partir da sobreposição de gesso e pigmento que são memórias construtivas e cuja proveniência imaginamos facilmente que possa ser uma escavação arqueológica.
Duarte Encarnação é um artista político. Escultor e professor na Universidade da Madeira, incorpora nas suas obras uma forte componente crítica, e no Museu Henrique e Francisco Franco questiona o papel do artista e da sua relação com a sociedade que se insere, o seu tempo e o poder político nas várias obras expostas.
Vítor Magalhães foi o primeiro estagiário da Porta 33 e Estruturas provisórias (indícios, anotações e materiais) (2019) incorpora essa maturidade cronológica, mas também artística. A sua instalação era para estar exposta no Museu de História Natural, acabou por ser apresentada no Cowork Funchal, mas Vítor diz “nada disto está concluído” e considera que as peças foram incorporando esta mudança de espaço expositivo. A sua obra é conceptual e estabelece relações epistemológicas com os objetos que existem na Biblioteca do Cowork, que não ficou incólume, pois Vítor manuseou os livros de forma a incluírem referências em comum com os seus trabalhos. Há estudos apresentados em igual circunstância que as obras finais, incluindo assim na exposição o método processual, que com as suas referências a Joseph Beuys ou a Jacques Lacan, torna essencial no processo de apreensão das obras.
Miguel Ângelo Martins apresenta no espaço 116 uma instalação que se debruça sobre os processos da pintura. Um plinto baixo onde estão dispostos diferentes pincéis (diferentes tamanhos e espessuras), enquanto em I Paint (2018) ouvimos uma voz em tom monocórdico que debita I paint nos seus diferentes tempos verbais. Na parede vemos 0,9-201 mm (2015), várias risografias que replicam diferentes espessuras de risco, como se tivessem sido feitas pelos pincéis. No fundo, há um voltar à essência da pintura, o desenho e à essência deste, o risco, mas que remete ao mesmo tempo para processos mecânicos, mais utilizados pelo grafismo, que pela pintura.
Várias obras de forma mais ou menos óbvia pontuam espaços públicos ou semi-públicos do Funchal para além das enumeradas. Contudo, a experiência do percurso é uma parte integrante da fruição desta exposição que é também uma comemoração deste aniversário da Porta 33 e que, acreditamos, deixará uma marca indelével na cidade do Funchal.