Ama Como a Estrada Começa, de João Pedro Vale e Nuno Alexandre Ferreira
Quem já conhece o trabalho de João Pedro Vale e Nuno Alexandre Ferreira (JPV&NAF) sabe que em larga medida se interroga sobre os mecanismos de controle e de codificação do individuo com base na sua estratificação social – códigos esses que por um lado servem para o proteger, mas por outro lado contribuem também para a sua anulação. Emigrantes (portugueses) no estrangeiro e homossexuais (portugueses) nas margens da sociedade são dois vetores recorrentes dessa investigação.
Quem também foi ver a última individual da dupla, na Galeria Cristina Guerra, A Mão na Coisa, A Coisa na Boca, A Boca na Coisa, A Coisa na Mão deparou-se com uma estrutura insólita no meio do espaço expositivo, um “urinol” em escala “real”. Tratou-se de uma instalação que ambicionava dar corpo ao não falado e, segundo almas e estruturas de poder mais sensíveis, ao transgressivo (mas sempre irrefutável), através da sua edificação institucional (uma retrete pública). O corpus é a psicose é o corpus. O reprimido que tende a preencher os cantos mortos do espaço físico. Foi deveras interessante. No entanto, a sua realização pareceu demasiado literal – talvez para alguém que tenha construído uma boa parte do seu universo sexual em casas de banho públicas na Grã-Bretanha e Paris, durante os anos 80.
Contudo, rendi-me completamente aos (en)cantos desta mais ambiciosa Ama Como a Estrada Começa, no MAAT, com curadoria de Inês Grosso, e a primeira grande obra deste duplo artístico a ser programada num contexto museológico. Logicamente, é uma ampliação de tudo o que foi ensaiado antes em Cristina Guerra, e assim ganha uma maior dimensão.
Mas não só.
A estrutura ostenta dois níveis, chegando quase ao teto; tem vários ambientes, num espaço concebido milimetricamente, mas é também muito solto; e ativa os sentidos diferentes ao entrarmos, além do visual: o tato, o olfato, a audição são igualmente convocados. Isso tudo cabe ao visitante descobrir por si próprio e recomendo vivamente que assim faça.
Em muita da literatura que acompanha esta obra pode ler-se sobre a importância simbólica dessa figura do surrealismo português, Mário Cesariny, sobre a torre de Saint Jacques no Marais, Paris (que serviu de “bússola” durante a peregrinação/pesquisa feita pelos artistas no decorrer duma residência na Cité International des Arts) e a encarceração de Cesariny na prisão de Fresnes por “atentado ao pudor”, quando alegadamente tentou engatar um polícia à paisana num cinema de Paris.
Porém, surge a questão: o que leva as forças da lei, representantes da moralidade reinante na nossa sociedade, a criar essas complexos e convincentes encenações (tema que remete para a mesma última individual deste duplo de artistas), só para “apanhar” homossexuais?
O (lindo) título Ama Como a Estrada Começa foi apropriado dum poema (de uma só linha) de Cesariny. É um título surpreendentemente romântico para estes artistas, que normalmente contemplam tudo – sexo, sociedade, os bons costumes – com um olhar divertido, mas cínico (de notar a insólita ternura das belas árvores/esculturas feitas em pares de calças de ganga para A Mão na Coisa…). No original intima-se a estrada aberta, as possibilidades do amor, enquanto aqui acabamos num espaço denso, claustrofóbico, quente e húmido, sede de desejos interditos, clausulados, com performances não anunciadas que também remetem para o imaginário e o filme de Jean Genet: Un Chant d’Amour.
Curiosamente, cá dentro senti-me em paz. Reconheci muitos dos códigos e dos símbolos por nós criados. Não fugia do ambiente de alguns bares (crus) de Lisboa. Na quase escuridão, procurei a luz emanando das etapas diferentes desta viagem por três aspetos fundamentais da obra destes artistas: – crime (instituição/prisão); doença (e sua cura); e pecado (homossexual).
Reconheci-me aqui, no meu estatuto de encarcerado.
Abria-se uma longa estrada, ainda por percorrer.
Se esta obra vos deixa indiferente, então estão provavelmente do lado do carcereiro: o meu inimigo.
por Colin Ginks