Nora Turato – someone ought to tell you what it’s really all about
Nora Turato (Zagreb, 1991) regressa ao Museu de Arte Contemporânea de Serralves depois de, no ano passado, se ter apresentado à instituição e ao público portugueses com a atuação I’m happy to own my implicit biases, na quarta edição do programa O Museu como Performance. Agora, a artista vem dizer-te o que é que realmente se está a passar. Fá-lo através de um vídeo gravado em Serralves, concebido propositadamente para a ocasião e assim se relacionando desde raiz com o seu contexto expositivo. O título someone ought to tell you what it’s really all about [alguém devia dizer-nos o que é que realmente se está a passar] anuncia e reflete o que o trabalho da artista se caracteriza por ser: comunicativo, direto e assertivo.
Até 19 de janeiro é passível de assistir, no primeiro piso do museu, à voz e à ação sui generis da artista, entregues ao espectador pela, como sempre, acertada e valiosa curadoria de Ricardo Nicolau, adjunto do diretor do museu.
Esta mais recente obra de Nora Turato, exposta no Museu de Serralves, consiste num vídeo de 20 minutos, diferenciando-se, assim, das performances ao vivo com que costuma presentear o seu público. Por certo, poderá dizer-se que o registo videográfico reduz o impacto do trabalho da artista, habitualmente intensificado pela sua energia física e pelos looks com que se apresenta, sendo considerada por muitos como uma guerreira amazona da alta-costura. Não obstante e surpreendentemente, o filme é forte e vibrante, projetando-se num eco que intercepta o espectador e se inscreve nele. Gera reflexão e discussão ulteriores, assim transgredindo os limites físicos do museu.
Na sala, instalada enquanto black box, com a projeção em loop, sente-se a força da expressão disruptiva de Turato como se a própria estivesse, efetivamente, perante nós. Como referido, trata-se do resultado de filmagens que se desenvolveram durante uma semana no auditório do museu, espaço onde a artista se expressou em tom oscilante, entre o grito e o súbito sussurro. O monólogo recitado é composto pela própria, mas constituído por apropriações de inúmeras frases retiradas de livros, filmes, anúncios publicitários e, principalmente, de publicações nas redes sociais. É nestas últimas plataformas que se encontram discursos pessoais e, inclusivamente, confissões que aí, online, transitam da esfera privada para a pública, algo que interessa particularmente à artista. Também a própria lógica de apropriação é estimulada e exacerbada pela internet, universo onde, como Ricardo Nicolau reconhece, cumpre-se a morte do autor, acontecimento anunciado desde a segunda metade do séc. XX.
Os vários e diversificados dados recolhidos são reunidos num mesmo texto que traduz uma só pesquisa, cujo objeto empírico é o teatro. O próprio espaço do auditório de Serralves, com palco e plateia de consideráveis dimensões, é, pois, ideal para essa investigação, bem como para o caráter artístico e performativo de Turato. A artista teve como referência estrutural a grande obra cinematográfica Noite de Estreia (1977) de John Cassavetes, filme onde se convocam os estados de espírito e as crises emocionais de uma atriz, interpretada pela magnífica Gena Rowlands. Do filme, também se destaca o confronto entre várias dualidades, caso da realidade/ficção e de atores/audiência.
No seu vídeo, Turato representa a figura da – ou de uma – atriz, através de monólogos sincopados que, apesar de convocarem diferentes estados de espírito, têm como emoção predominante a cólera, manifestada a um nível já próximo da histeria. Como Ricardo Nicolau refere, a artista explora um dos principais estigmas do género feminino, questionando “o que é que pode significar uma mulher colérica que não tem receio de ser apelidada de histérica”. O curador explica que a própria crise está refletida na forma como o vídeo é realizado, não sendo descrita ou ilustrada, mas sim, tal como no filme de Cassavetes, representada pelas operações formais e construção fílmica. O resultado é uma peça que se distingue amplamente de uma simples atuação teatral. Com efeito, Turato procura contrariar a ideia de que a prática do teatro consiste unicamente na recita profissional de um texto pré-concebido. Para tal, constrói um espaço performativo volátil e insubordinado, comandado por si.
A importante obra do cinema independente americano foi também determinante na aproximação da artista ao comissário, o qual confessa tratar-se do “filme da minha vida”. Ricardo Nicolau conta, ainda, que quando a convidaram para expor em Serralves, a artista afirmou não querer fazer performances nem instalações que derivassem do design, área em que se formou e que também tem vindo a explorar artisticamente, pois “sou demasiado conhecida por isso”.
Através da sua criação artística, Nora Turato desconstrói preconceções e coloca questões atuais e abertas que permitem remeter para outros contextos e problematizações. É conhecida por ser imprevisível, radical e transgressora, mas, simultaneamente, eficaz. Afirma-se num tom que centra todos os olhares e as atenções sobre si, destacando-se não somente no momento performativo, como entre os seus pares no panorama artístico contemporâneo.
Numa década com particular visibilidade e protagonismo da luta pela igualdade de direitos e de género e onde se multiplicam movimentos como o #MeToo, o trabalho da artista é particularmente importante, não sendo mais um(a). Afirma-se pela qualidade expressiva, discursiva e também formal e visual com que expõe. Como Turato reconhece, o mundo da arte – e, podemos acrescentar, das restantes esferas – ainda não está preparado para aceitar uma mulher aos gritos. Igualmente, mantém-se uma certa resistência perante a utilização de determinado vocabulário por parte da figura feminina, algo que a artista explora neste recente vídeo sem limites, mas também sem excessos, equilíbrio este difícil de alcançar.
A artista croata vive e trabalha, atualmente, em Amesterdão, cidade onde, durante dois anos, esteve em residência artística na reconhecida Rijksakademie. Desde 2018, posteriormente à sua participação na Manifesta de Palermo e na Liste art fair da Basileia, tem vindo a ser considerada uma das mais entusiasmantes jovens artistas da atualidade. Conta com mostras em algumas instituições relevantes, caso do Centro de Arte Beursschouwburg (2019), em Bruxelas, e o Kunstmuseum Liechtenstein (2019), em Vaduz.
Nora Turato defende como princípio que if you are going to take up 20 minutes of someone’s time, you better put on a show e é precisamente isso que, em Serralves, ela faz.